quinta-feira, 18 de abril de 2024

 

Quintas Literárias 2023 / Organização Sôniahelena

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Quintas Literárias 2023 / Organização Sôniahelena. Vários Autores. 1ª edição. Brasília, DF: Vitalia, 2024, 368 p.

O cartaz anuncia o lançamento, no dia 21 de março, do sexto volume da série Quintas Literárias. Com apresentação do Presidente da ANE – Associação Nacional de Escritores, escritor Fábio de Sousa Coutinho, o novo volume agrega à série, iniciada em 2018 com a edição dos textos das palestras realizadas em 2017, no Auditório Cyro dos Anjos, compondo um acervo de “publicações virtuosas, eternizando o trabalho intelectual desenvolvido na ANE ao longo desses anos e invariavelmente assegurando relevante diversidade temática e alta qualidade estética”.

As Quintas Literárias são, portanto, um evento marcante no calendário de atividades e de encontros da ANE. O panorama dessa agenda pode ser visitado na página da Associação – https://anenet.com.br/ – um convite a uma estimulante navegação cartografada conforme um sofisticado imaginário cultural e literário.

A edição agora lançada, sexto volume, corresponde às participações do ano de 2023, das Quintas Literárias, num contexto de celebrações importantes, incluindo “centenários ocorridos no ano e, também, um jubiloso bicentenário na literatura brasileira, o do poeta romântico maranhense Gonçalves Dias e uma programação [que]se encerrou no dia 7 de dezembro, com mais uma apresentação de palestra-recital de nosso associado Luiz César Costa, que celebrou a poesia do pantaneiro Manoel de Barros”, diz Fábio Coutinho em sua Apresentação.

O sumário do volume traz o elenco dos palestrantes e as datas de suas exposições: Roberto Rosas, Vladimir Carvalho, Carlos Henrique Cardim, Edmílson Caminha, Margarida Patriota, Anderson Olivieri, Cristovam Buarque, Sôniahelena, Lidivaldo Reaiche Britto, José Roberto de Castro Neves, Maurício Melo Júnior, Lauro Moreira, Vera Lúcia de Oliveira e Luiz César Costa. Há outros registros temáticos que compuseram a agenda das Quintas em 2023.

Por indicação do querido amigo e colega de universidade (UnB) Vladimir Carvalho, fui um dos convidados a formar mesa, com o próprio Vladimir (O Direito de Exibir), numa das Sessões das Quintas Literárias, em 2023, com o tema Cinema e Literatura (dia 26 de outubro, p. 267-310). Aí, os textos elaborados por mim e por Vladimir, para a edição.

O próprio Vladimir, notável cineasta, a meu ver, hoje, no Brasil, o mais importante documentarista ainda em plena atividade, foi o meu paraninfo, mobilizado por recente livro que eu havia publicado – José Geraldo de Sousa Junior. Lido para Você: Direito, Cinema e Literatura – São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p., no qual dou relevo à filmografia do querido colega, nos termos que podem ser conferidos aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura/).

Vladimir inclui em seu texto, trazido para a edição do volume 6, uma nota de apreço, compartilhando comigo a mesa, mas abre uma reflexão que lhe é própria, basta ver outros ensaios seus sobre o seu tema de vida: “Assim me senti mais à vontade para, depois de ler o livro de autoria de José Geraldo, Lido para Você, que adota o subtítulo Direito, Cinema e Literatura, animar-me a falar de algo que me é comum, porque trata-se em parte de meu ofício, e portanto razão de atuar no mundo da cultura como simples militante do cinema brasileiro”. E prossegue, nesse diapasão, o seu instigante ensaio.

De minha parte, aproveito o ensejo para compartilhar a minha exposição. Não me parece um excesso. Considero que o repositório, valioso em sua concepção, tem circulação muito restrita porque fica limitado ao acervo da Associação e manuseado a poucas mãos, embora pelas mais esclarecidas cabeças da cidade e do país (já que a ANE é nacional. Por isso acho válido, com o impulso da rede movimentada pelo Jornal Estado de Direito que abriga a Coluna Lido para Você, amplificar para o compartilhamento com interlocutores de diferentes inserções acadêmicas em sentido estrito, e culturais em sentido amplo, o que pude apresentar num sarau literário.

Segue o meu texto.

Compartilho, nesta noite, com o cineasta e professor Vladimir Carvalho e com Carmela Grüne, minha editora no Jornal Estado de Direito, um debate, coordenado pelo presidente da ANE, o escritor Fabio Coutinho, sobre Cinema e Literatura, tema imaginado a partir da obra Lido Pra Você, que organizei, num primeiro volume exatamente sobre o tema “Direito, Literatura e Cinema”.

Do que trata essa obra (São Paulo: Editora Dialética, 2023. 168 p. (https://loja.editoradialetica.com/humanidades/lido-para-voce-direito-cinema-e-literatura), publicada em coedição com o Jornal Estado de Direito, espaço no qual são publicados os textos originais que formam a edição do livro.

Um primeiro lançamento da obra foi realizado em junho, no Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB (evento virtual), dentro do projeto “Saindo do Prelo”, com abertura conduzida pelo Presidente do IAB Sydney Sanches, Marcia Dinis, Diretora da Biblioteca do IAB e as participações especiais de Carmela Grüne, Cristina Zackzeski e Nara Ayres Brito, membros do Instituto, contando também com a participação de autores e de autoras das obras comentadas no livro.

Logo, com Carmela Grüne, iremos organizar um cronograma subsequente de lançamentos e também, pela página do Jornal, o modo de aquisição do livro, cujos direitos autorais servirão ao objetivo de contribuir para a manutenção da plataforma do Jornal Estado de Direito.

O livro é o primeiro volume de uma coleção que reúne, por seleção temática, os temas da Coluna. Neste primeiro volume – outros três estão sendo preparados – o tema é Direito, Cinema e Literatura.

Na minha Introdução – Lido para Você. O Real Apreendido por Muitas Narrativas e Diferentes Linguagens – explico o processo de criação da obra e a seleção dos textos.

Tal como digo nessa Introdução, aqui reproduzida, artigos de opinião e a sua expressão no estilo de interpretação de conjuntura passaram a compor uma característica de minha intervenção intelectual. É um estilo opinativo que experimento desde os anos 1980.

Primeiro, no Jornal da Ordem, da OAB do Distrito Federal, nas sucessivas direções editoriais de Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, Jarbas da Silva Marques e Galba Menegale. Depois na Rádio Cultura FM, do Governo do Distrito Federal, durante a gestão do Governador Cristovam Buarque, no Programa “Música e Informação”, com uma participação semanal, sempre atenta, a partir da leitura matinal dos jornais, feita pelo âncora, e meus comentários articulados pelo eixo interpretativo da democracia, da cidadania, da justiça e dos direitos. Esse eixo, aliás, baliza um plano mais geral que se orienta pela disposição dupla: contribuir para uma contínua democrati- zação da democracia e uma constitucionalização atualizada pela estratégia de atualização permanente de direitos, já que esses não são quantidades, são relações, daí que a professora Marilena Chauí sustente ser a democracia uma forma de sociedade e não apenas uma forma de governo.

Por isso também, que entre os anos 2006 e 2008, na Universidade de Brasília, com a coordenação dos Grupos de Pesquisa “O Direito Achado na Rua” e “Sociedade, Tempo e Direito”, publicamos um tabloide mensal denominado Observatório da Constituição e da Democracia, com colunas e entrevistas mensais para o acompanhamento criativo do experimento de realização da Constituição e da Democracia, já que seus fundamentos não se instalam uma vez para sempre mas são sempre o resultado de disputas e posições interpretativas que prosseguem no movimento legitimado da política.

Uma nota de relevo atribuo à série de artigos publicados mensalmente na Revista do Sindjus-DF, Sindicato dos Servidores do Judiciário e do Ministério Público no Distrito Federal, por quase dez anos, entre 2001 e 2011.

Tudo começou quando o Coordenador-Geral do Sindjus, Roberto Policarpo, propôs para o 3o Congresso da categoria, o tema central: A sociedade pode ser democrática com um Judiciário conservador, realizado nos dias 7, 8 e 9 de dezembro de 2001, e me incumbiu de proferir a conferência inaugural sobre o tema.

Trazendo para os servidores do Judiciário e do Ministério Público, sindicalizados, a responsabilidade de pensar esse tema, o Sindjus mostrava claramente que a promessa constitucional de edificar uma sociedade justa e solidária implicava em dinamizar o protagonismo participativo já presente em várias dimensões da sociedade e do Estado, mas ainda tênue no espaço do Ministério Público e, principalmente, do Poder Judiciário. E nesse passo, trazer para a ação sindical o compromisso de não só conduzir lutas que implicassem acumular conquistas orientadas por demandas corporativas, mas igualmente engajar-se em frentes políticas que abrissem perspectivas de desenvolvimento democrático pleno para toda a sociedade. Logo a seguir, Policarpo me convidou para manter uma coluna permanente na Revista, nascendo aí uma colaboração que durou até 2011, quando deixou de circular, mudando a direção sindical, já alcançada pelo arranhar da política, com o roer das entranhas democráticas, a fera proto-fascista que recentemente saiu de sua hibernação, com o golpe desdemocratizante e desconstituinte desencadeado em 2016.

Meu querido editor e amigo Sergio Antonio Fabris publicou em Idéias para a Cidadania e para a Justiça (Porto Alegre, 2008), uma coletânea dos 50 primeiros artigos da Coluna. O mesmo Sérgio Fabris que me apresentou a Carmela Grüne, a motivada editora do Jornal Estado de Direito, e de outros belos e engajados projetos nas áreas do direito e da cidadania, conforme ela própria relata na apresentação desteº volume, de Lido para Você.

Carmela conta como ela ao recompor o projeto editorial do Jornal Estado de Direito, um projeto com dezoito anos (lançado em 15 de novembro de 2005) de contínua edição, então passando do formato impresso para o digital, me convidou para tornar permanente uma colaboração eventual e como, assim, surgiu a ideia da Coluna.

O Jornal já mantinha uma agenda de colunistas permanente, ocupando cada um e cada uma um dia da semana e acertamos que eu cobriria a quarta-feira. Foi aí que me ocorreu transformar em rotina uma experiência de ofício, a de orientar leituras para meus alunos, especialmente de graduação, estimulando-os tal como eu próprio o fazia com empenho metodológico, a elaborar resenhas dessas leituras. Por outro lado, muitas dessas leituras eram pautadas não só por necessidade de atualização pedagógica de bibliografias, mas pelo ofício de examinar monografias, relatórios, dissertações e teses, além de livros. Portanto, naturalmente, sugestões de leituras para pesquisadores e, por que não, para editores, considerando o ineditismo e a relevância de muitos desses trabalhos.

Assim, a coluna logo se exibiu para a imaginação: Lido para Você. Anoto que a inspiração veio de coluna mantida pelo notável jurista André-Jean Arnaud, diretor de pesquisa do CNRS (França), editor de Droit et Société – Revue Internationale de Theorie du Droit et de Sociologie Juridique. Essa revista, vale dizer, foi fundada em 1926, por Hans Kelsen, León Duguit e Franz Weyer. Claro que Arnaud, com seus colaboradores, investidos de uma perspectiva crítica, imprimiu ao periódico uma outra orientação para os estudos críticos de teoria do direito e de sociologia.

A Droit et Société tinha uma seção “Nouvelles du Monde”, e nela em registro permanente, dois tópicos: “Chronique bibliographique” e “Lu pour vous”. Nesta, comentários indicativos de edições recomendadas pelos editores/convidados/subscritores.

Para minha “glória”, no nº 9, edição de 1988, o próprio Arnaud (sobre Arnaud disse-me Michel Miaille certa vez, “nous parlons d’une institution”) publicou uma nota sobre O Direito Achado na Rua (pp. 328-329): Le droit qu’on trouve dans la rue, comme cours de Faculté de droit, ce n’est pas mal! Décidément, nous avons, em France, bien du chemin à faire….

Assim nasceu a coluna Lido para Você, com mais de duzentos textos já publicados. Eles abrangem um amplo arco de referências, modos paradigmáticos de apreensão do real, pelas aproximações filosóficas, teológicas, científicas, literárias, jurídicas, todos discursos interpretativos expressos em diferentes linguagens, mas sempre pelos eixos que orientam minha leitura de mundo: a democracia, a cidadania, a justiça e o direito.

Neste primeiro volume, com a apresentação de Carmela Grüne, e não poderia ser outra a apresentadora dado o seu acolhimento editorial à Coluna, são publicados títulos que se caracterizam por articular os temas de fundo, formadores do eixo, pela mediação cultural e literária.

São leituras que desvendam no discurso artístico o intuir que não precisa fundamentar, explicar ou revelar o real, o expõe em compreensão direta e sem mediações. Conforme lembra o grande acadêmico de Coimbra Eduardo Lourenço (Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999), a literatura não é um delírio, mas a apropriação do real por meio de uma outra linguagem.

Nesse volume I, colecionados a partir da temática que distingue a obra, são destacados os seguintes textos, além da minha Introdução e do Prefácio de Carmela Grüne, os artigos conforme o Sumário: Coluna Lido para Você: Direito no Cinema Brasileiro; Cartas de Viagem: Histórias de caminhos não contados; Olhos de Madeira. Nove Reflexões sobre a Distância, de Carlo Ginzburg; Meninos do Rio Vermelho e Uma Senhora Pelada; Criminologia e Cinema: Semânticas do Castigo; Comunicação e música; Memória e Perspectivas 50 Anos de Letras da Universidade de Brasília (1962-2012); Pesadelo. Narrativas dos anos de chumbo; Retratofalado; A Rua de Todo Mundo; Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica; Agenda 2021; Traços – Especial 5 Anos; Por Que Ler os Clássicos; Justiça Indeferida; Literaturas Munduruku; As Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva; Deu Nisso! Cláudio Almeida.

Júlia Noffs foi a Produtora Editorial, cujo zelo garantiu que o livro pudesse alcançar a qualidade de edição com que se apresenta. Chamo a atenção para a capa, criação de Larissa Brito. Agradeço a Larissa ter acolhido para o esboço do desenho do trabalhador que representa o Direito na iconografia do tema, a sugestão de tomar como inspiração a arte de nossa colega pesquisadora do coletivo O Direito Achado na Rua e artista reconhe- cida Judith Cavalcanti. Por isso, nos créditos a nota seguinte:

A imagem do trabalhador com os cestos para representar o Direito se inspira na ilustração criada por Judith Cavalcanti, Têmis, como representação da Justiça para ilustrar a capa do volume 10, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade, co-organizado pelo autor deste primeiro volume de Lido para Você.

Anoto um trecho do prefácio elaborado por Carmela Grüne:

Realmente é uma grande honra poder apresentar essa obra que é o resultado da sua generosidade com o Jornal Estado de Direito e seu público leitor, antes impresso, agora na edição eletrônica semanal, às quartas-feiras, onde o professor José Geraldo publica a Coluna “Lido para Você”, a qual apresenta um universo de pessoas através de suas obras sejam elas monografias, teses, pesquisas, livros, nos presenteando com a fonte que fortalece a nossa consciência crítica: o conhecimento. Neste prefácio, também, além de contar um pouco sobre a história do professor José Geraldo com o Jornal Estado de Direito é importante destacar o papel da obra “O Direito Achado na Rua”, mencionar os pesquisadores e autores que trouxeram grandes ideias para a sua elaboração. O livro, organizado por José Geraldo Souza Júnior, quebra paradigmas, ao colocar o Direito de forma prática, não o distanciando do coletivo, mas o aproximando daquele que está na rua. Dá voz e vez à população pelo protagonismo, com vistas a transformação da sociedade e o empoderamento da cidadania. Como referi a Coluna “Lido para Você”, o professor José Geraldo, nesse primeiro volume, apresenta os estudos de pesquisadores e autores, assim, também agradeço publicamente a eles pela dedicação nas áreas que são tão sensíveis e necessárias o olhar social.

Até aqui, uma espécie de recensão que expõe o livro. Para a Quinta Literária, em feição reduzida para se ajustar ao formato e a devida consideração ao auditório. Entretanto, o tema da sessão – Quinta Literária – proporciona abrir a vertente de interesse para o conhecimento do Direito e suas formas de difusão, incluindo o ensino e a educação jurídicas. As relações entre Direito, Arte, Literatura, Teatro e Cinema formam uma Paidéia em alcance clássico e dispõem de um catálogo expressivo para o confirmar. Este texto recupera o pano de fundo da exposição, na sua completude, para registro nos anais do evento.

No plano epistemológico, a propósito, tem sido estimulante a vertente que trabalha a interlocução interdisciplinar e complexa para acentuar o diálogo entre saberes, demonstrando que o conhecimento não se realiza por uma única racionalidade, mas, ao contrário, pela integração entre diferentes modos de conhecer que nos habilitem a discernir o sentido e significado da existência e a elaborar sínteses interpretativas que além de nos permitir compreender o mundo, contribuam para transformá-lo, conforme, entre todos, sustenta Boaventura de Sousa Santos. Trata-se, como acentua Roberto Lyra Filho (A Concepção do Mundo na Obra de Castro Alves, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972; Filosofia Geral e Filosofia Jurídica, em Perspectiva Dialética, in Palácio, Carlos, S.J., coord. Cristianismo e História, São Paulo: Edições Loyola, 1982), de operar padrões de esclarecimento, recusando o monólogo da razão causal explicativa, para abrir-se a outras possibilidades de conhecimento: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica; o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; o divertir-se, da atitude lúdica; o revelar, da atitude mística.

Tem razão Eduardo Lourenço, não só em sustentar a unidade da poesia fernandiana (Fernando Pessoa), mas em suscitar a totalidade que abarca os seus aparentes fragmentos heterônimos, para indicar que nesse processo o problema central continua a ser o do conhecimento. Para Lourenço (Tempo e Melancolia em Fernando Pessoa, publicado na edição brasileira do livro O Mito da Saudade, Editora Companhia das Letras), os avatares de Pessoa representam uma tentativa desesperada de se instalar na realidade.

Marx não havia ainda com O Capital analisado a estrutura econômica para, num certo modo de produção explicar a forma- ção da mais-valia, e bem antes o Padre Vieira, artisticamente, a exibiu tal como está no Sermão XIV do Rosário:

Eles mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto do vosso trabalho, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o de vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: ‘sic vos non vobis melificatis apes’ (assim como vós, mas não para vós, fabricais o mel abelhas).

No plano das habilidades, que é o que remete mais imediatamente à constituição de perfis profissionais, a alusão a uma justiça poética quer mais designar a categoria subjetividade, como própria ao afazer do jurista para interpretar criativamente e com imaginação as relações do homem com o mundo e com o outro. É com este sentido que Martha Nussbaun fala em poesia e imaginação (Justicia Poética. La Imaginación Literaria y La Vida Publica, Editorial Andrés Bello, Barcelona/Buenos Aires/México D.F./Santiago do Chile), ou seja, para caracterizá-las como ingrediente indispensável ao pensamento público, com condição de criar hábitos mentais que contribuam para a efetivação da igualdade social.

Aplicadas aos operadores do Direito, essas categorias traduzem as expectativas de mediação humanística entre visão de mundo e consciência social, de modo a traduzir aquela exigência funcional destacada por Bistra Apostolova (Perfil e Habilidades do Jurista: razão e sensibilidade, Notícia do Direito Brasileiro, no 5, Faculdade de Direito da UnB, Brasília): a habilidade de ver o outro como diferente e saber colocar-se no lugar dele, e desse modo, desenvolver a capacidade de imaginar e de compreender, essencial na formação do bacharel.

O antropólogo Pierre Clastres, em seu livro A Sociedade Contra o Estado – Investigações de Antropologia Política (Porto: Afrontamento, 1984), mostra que a lei encontra espaços inesperados para se inscrever, indicando uma relação entre lei, escrita e corpo como eixo essencial relativamente ao qual se ordena, na sua totalidade, a vida social e comunitária.

É certo que Clastres transporta a sua percepção para a dimensão antropológica em cuja análise se deteve, ou seja, o estudo das sociedades antigas e os ritos de iniciação que nelas fazem do corpo o espaço que a sociedade designa como único espaço propício a transportar o sinal de um tempo, a marca de uma passagem, o cumprimento de um destino, transformando o corpo do indivíduo em veículo de uma operação social de aprendizado, de identidade e de norma cultural.

Para Clastres, o ritual iniciático é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens e por meio dele a sociedade dita a sua lei aos seus membros, ela inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos porque a ninguém é permitido esquecer a lei que funda a vida social da tribo.

Em suas considerações, Clastres evoca a passagem de Kafka em A Colônia Penal, na qual o oficial explica ao viajante o funcionamento da “máquina de escrever a lei”: a nossa sentença não é severa. Gravamos simplesmente com a ajuda do ferro o parágrafo violado sobre a pele do culpado.

Aliás, trazendo essas considerações para o campo da imagem e do cinema, vale pontuar o belo vídeo produzido pelo Centro de Produção Cultural e Educativa – CPCE, da Universidade de Brasília, a UnB: “Pintura Corporal“, interessante trabalho de pesquisa e de direção de Devair Montagner. Em seu roteiro traz grafismos, desenhos, cores, pinturas corporais das culturas Ya- nomami de Demini (AM), Kayapó de Kriketum (PA) e Marubo (AM), revelando significados sociais e simbólicos, que justificam o sobretítulo do vídeo – “Uma Pele Social“.

Penso, pois, tomando como referência a metáfora da “pele social”, ser possível conceber a constituição de discursos sociais de normatividade para além dos lugares usuais e obrigatórios da jurisdição: o Estado, as classes sociais, os grupos de poder, revelando-se em seus significados rebeldes ao “discurso da arrogância” de que fala Barthes, sempre que de um lugar “autorizado” se reivindique o monopólio do dizer o direito.

Tenho em mente, ao assinalar a necessidade deste deslocamento de percepção, a advertência de Carlos Cárcova de que o direito, enquanto dimensão ontológica da normatividade social, deve ser pensado como uma prática social específica que expressa e condensa os níveis de conflito social em uma formação histórica determinada. Mas esta prática, ele completa, é uma prática discursiva no sentido que a língua atribui a esta expressão , isto é, no sentido de um processo social de produção de sentidos, processo conforme indica Enrique Marí, de formação, decomposição e recomposição no qual intervém outros discursos que, diferentes por sua origem e função se entrecruzam.

Não é a Justiça a resultante de um diálogo que liga os Atos dos Apóstolos ao Manifesto Comunista de 1848? Entre nós, no Brasil, quem disso se apercebeu, em síntese político-jurídica evidente, foi o político e jurista João Mangabeira:

……a fórmula da Justiça não deve ser mais a que se resume em ‘dar a cada um o que é seu’. Aplicada em toda a sua inteireza, a velha norma é o símbolo da descaridade, num mundo de espoliadores e de espoliados. Porque se a Justiça consiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria e ao desgraçado a desgraça, que isso é o que é deles. A regra da Justiça deve ser: a cada qual segundo o seu trabalho, enquanto não se atinge o princípio de a cada um segundo a sua necessidade.

De outro modo, não podendo às vezes ultrapassar o disciplinado esforço de fundamentação próprio dos estudos lógicos sobre o enunciado dialético da contradição, pode o discurso artístico suprir o labor filosófico e num delírio declamatório dizer o indizível: “É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”, na música de Gilberto Gil; ou no poema de Alberto Caieiro: O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

Quase 50 anos após a conferência de Sutherland lançando a tese do white collar crime, o debate chega a nossa consideração criminológica sob o impulso de uma delinquência político-institucional. Todavia, a declamação antecipadora dos versos inquietos de Chico Buarque e Francis Hime, cantava os desvarios de nossas elites entreguistas e predadoras: Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações.

Em seu livro Literatura & Direito. Uma outra leitura do mundo das leis (Rio de Janeiro: LetraCapital Editora/IDES – Instituto Direito e Sociedade, 1998), Eliane Botelho Junqueira trata dessa relação, acentuando vários aspectos dos vínculos entre as ciências sociais e a literatura para ampliar as percepções da realidade social. Ela põe em relevo nesse campo a disputa de diferentes análises sobre o direito desenvolvidas na academia, sobretudo norte-americana, a partir do movimento direito e sociedade e direito e desenvolvimento para estabelecer esse novo campo de relações:

As correntes Law and economics, Law and society, critical legal studies, critical race theory e feminist jurisprudence, dentre outras, sem dúvida são conhecidos exemplos dessa efervescente produção acadêmica. Mais recentemente, o ‘movimento’ Law and literature conquistou importante espaço institucional” (pág. 21). A partir daí ela estabelece uma interessante distinção de tendências, a primeira denominada literature in Law, segundo ela, “tendo como origem remota os trabalhos de Benjamin Cardozo, (que) defende a possibilidade dos textos jurídicos – aqui incluindo-se leis, decretos, contratos, testamentos, contestações, sentenças etc – serem lidos e interpretados como textos literários” (pág. 22); e a segunda tendência, “conhecida como Law in literature, voltada para trabalhos de ficção que abordem questões jurídicas” (pág. 23).

Essas tendências continuam fecundantes na cultura jurídica latino-americana, dotada de um imaginário que não se comporta apenas na racionalidade instrumental, mas que aspira a uma razão sensível, afetiva, para assimilar o alcance sugerido por Maffesoli. Ainda mais num ambiente nutrido pelo extraordinário favorável a nos permitir adentrar no realismo. Não sei se procede do Gabo (Gabriel Garcia Marques) a anedota do professor que interpelando seu aluno sobre ele ter lido a Crítica da Razão Pura de Kant, recebeu a resposta imediata, não, mas assisti o filme.

Anoto aqui, o cuidado editorial, por exemplo, do Ministério de Justicia y Derechos Humanos, da Argentina, no sentido de preservar esse imaginário e procurar inculcar na cultura jurídica dos operadores do direito e da justiça portenhos a exigência do enlace entre direito e literatura. Indico a importância da leitura do livro organizado por Alicia E. C. Ruiz, Jorge E. Douglas Price e Carlos María Cárcova, La letra y la ley. Estudios sobre derecho y literatura (Buenos Aires: Infojus, 2014). Na Introdução ao livro, coincidente com as tendências marcadas por Eliane Junqueira, Carlos Cárcova para além de reafirmá-las, ainda acresce: otro tipo de articulación, una articulación ‘interna’…que permite descubrir notables analogias en el proceso de produción discursiva del derecho, por una parte y en el de la literatura en sentido amplio, por otra” (pág. IX).

Volto ao livro de Eliane, para dizer que nele, uma nota de precedência é encontrada, quando ela acentua que a inspiração para a edição que preparou, decorreu dos ciclos sobre Direito e Teatro e Direito e Cinema organizados por Nilo Batista na Seccio- nal Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro, em 1986 (pág. 17).

Portanto, ao interesse que o teatro sempre proporcionou para o conhecimento do direito e para a pedagogia da vida pública e da cidadania e que aparece de forma expressa e razão de fundo nas obras de Hegel (valendo-se da Antígona), de Jhering (utilizando o Mercador de Veneza) e que se transforma em método no trabalho político de Augusto Boal (Teatro do Oprimido, Teatro Forum), hoje registro didático difundido no ensino jurídico, ganhou o cinema esse lugar destacado, que a filosofia soube tão bem utilizar. No ensino jurídico aludo às excelentes estratégias encontráveis um pouco nos melhores cursos.

Na UnB, que melhor conheço, distingo os projetos combinando ensino, extensão e pesquisa desenvolvidos pelos professores e professoras Gloreni Machado (teatro), Bistra Apostolova (teatro), Alexandre Bernardino Costa (cinema) e Cristiano Paixão (cinema). E, notadamente, o trabalho desenvolvido pela professora Alejandra Leonor Pascual: Produção cinematográfica para direitos humanos, para estudantes de Graduação e de Pós-Graduação em Direito e outros cursos da UnB.

Conforme nota que fez a meu pedido, a professora Alejandra salienta que a rica experiência de ensino e implementação do uso de produção cinematográfica em disciplinas de Graduação e de Pós-Graduação começou durante o primeiro semestre de 2011, na Faculdade de Direito da UnB, quando ministrava disciplinas que abordam temáticas de direitos humanos.

Em suas palavras, com essa metodologia os/as alunos/as aprendem a realizar filmes de forma profissional para a realização de seus trabalhos acadêmico-científicos, em cada uma das etapas de produção de um filme; aprendem a trabalhar em equipe já que o produto final dessa metodologia será a realização de um filme, pensado, elaborado, discutido, ambientado, protagonizado, musicalizado e editado pelos próprios estudantes. A ideia de incorporar o ensino e uso de produção cinematográfica no ensino começou em 2010 quando estava realizando um Pós-Doutorado em Filosofia Política na cidade de México. Durante a minha permanência naquela cidade comecei a frequentar cursos sobre produção cinematográfica, que incluíam o domínio de técnicas de pré-edição de filmes (linguagem cinematográfica, elaboração dos personagens, história e argumento cinematográficos, elaboração de roteiro, story-bord, planilhas e plantas de filme), edição de filmes (uso de cores e sons, uso das câmeras e iluminação, como filmar, realização de diálogos etc.) e pós-edição de filmes. Depois de ter realizado vários cursos naquela cidade ainda realizei um último, sobre metodologia de auto-conhecimento para produção cinematográfica, com a cineasta mexicana Carolina Rivas, que foi de fundamental importância para possibilitar a sistematização de uma metodologia apropriada para organizar e incorporar o conhecimento obtido nos cursos sobre produção cinematográfica no intuito de aplicá-la como proposta didático-metodológica no Curso de Direito da Faculdade de Direito da UnB.

A experiência foi objeto de comunicação no I Encuentro Internacional de estudios visuales latinoamericanos 2014, organizado pela Universidad Nacional de Hidalgo e realizado em Pachuca, Hidalgo, México, em julho de 2014 sob o título Enseñanza de producción cinematográfica para la realización de trabajos académico-científicos sobre derechos humanos en América Latina.

Além disso, em 2015 a professora recebeu Menção Honrosa na primeira Edição do Prêmio Esdras Borges de Ensino do Direito, sobre qualidade da dinâmica de ensino do Direito, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, pelo trabalho que desenvolve com o ensino de produção cinematográfica em direitos humanos na Universidade de Brasília –UnB.

Chamo a atenção, entretanto, para a vertente filosófica de conhecer pelo cinema por meio do precioso livro de meu colega de UnB, Julio Cabrera Cine: 100 años de filosofia. Uma introducción a la filosofia a través del análisis de películas (Barcelona: Gedisa Editorial, 1999). Pelo que sei há uma edição brasileira recente desse livro, embora eu não saiba indicar a fonte editorial.

Na obra Cabrera faz uma advertência para a qual sinalizei antes:

Decir que el sentido del mundo debe abrirse para uma racionalidad exclusivamente intelectual, sin ningún tipo de elemento emocional y sensible, es, por lo menos, una tesis metafilosófica que necesita de justificación. Tal vez el sentido del mundo solo sea captable a través de uma combinación – estratégica y amorosa – de sense y sensibility, como diria la profesora Emma Thompson. En este sentido, se habla aqui de una ‘razón logopática’, de uma racionalidad que es lógica y afectiva al mismo tiempo, y que se encontraria presente en la literatura, en la filosofia de los mencionados ‘rebeldes’, y, ciertamente, em el Cine (pág. 9).

Também no ensino do Direito, desde há muito, percebe-se a preocupação didático-pedagógica e também epistemológica, de abrir o conhecimento do jurídico para outros modos de apreensão de seu objeto, em diálogos estético-expressivos mediados por diferentes racionalidades.

Essa preocupação transparece dos esforços indutores que a Comissão de Educação Jurídica, na origem (1991), Comissão de Ciência e Ensino Jurídico, do Conselho Federal da OAB, pro- curou imprimir em seu protagonismo para o aperfeiçoamento dos cursos de Direito, sua atualização curricular e sua avaliação. Em balanço crítico de um de seus mais destacados presidentes, influente no estabelecimento de padrões para a implementação desses objetivos (MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Ensino Jurídico, Literatura e Ética. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2014), com experiência docente enriquecida com o trabalho que o autor desenvolveu, ao longo de seis anos, na presidência da Comissão Nacional de Ensino Jurídico da OAB (pág. 9), constata-se o tempero que a literatura proporciona para a formação jurídica. De fato, ele procura mostrar (pág. 9), como algumas obras essencialmente literárias podem ser úteis no ensino do direito. Ele acrescenta:

À guisa de motivação para as aulas ou, até mesmo, como método destinado a ilustrar o estudo de determinados institutos, o professor de direito pode valer-se, com proveito, da literatura. Isso já não constitui novidade, nas Faculdades de Direito, de tal forma esse enfoque vem sendo difundido em trabalhos teóricos e adotado na prática docente. Livros e revistas especializadas têm contribuído significativamente para despertar o interesse pela literatura, servindo como elementos auxiliares do ensino jurídico. Além do que o gosto literário amplia a formação humanística e esta é indispensável ao profissional do direito. O senso jurídico, que Ferrara dizia ser tão importante para o jurista quanto o ouvido musical para o músico, só pode ser apurado pelas boas leituras e pela experiência da vida. Até mesmo a poesia tem papel de relevo na formação do senso jurídico. Não é por outra razão que Cou- ture salientava que sentença deriva de sentir. O juiz que conhece apenas o direito tende a isolar-se numa torre de marfim. Ele necessita obter isso que as escrituras chamam de sal da terra, como forma de prevenir-se contra as impurezas do espírito humano e os vícios de interpretação que podem causar. Da mesma forma o advogado não deve adstringir-se às leis. Carlos Drummond nos advertia, em belo poema, que as leis não bastam / os lírios não nascem das leis. Daí o lugar de destaque conferido à literatura no ensino jurídico (págs. 9-10).

Em seu instigante livro El aprendizaje del aprendizage. Fruta Prohibida. Una introducción al estúdio del Derecho (Madrid: Editorial Trotta, 1995), Juan Ramón Capella mostra a preocupação de que o estudo do Direito não se torne uma tarefa fatigante, “desligado dos temas que andavam pelas ruas”, para assinalar o desalento, lembra Roberto Lyra Filho, do estudante de direito Castro Alves (Pego o compêndio – inspiração sublime/ P’ra adormecer inquietações tamanhas./ Violei à noite o domicílio – ó crime!/ Onde dormia uma nação de aranhas.) e sugere metodologias alternativas de modo a aprender de material no jurídico: de los relatos cinematográficos, de la pintura, de cursos o conferencias de otras facultades. Sobre todo, de la lectura; y del saber estar en soledad (pág. 97).

Ao final de seu livro cuida de oferecer a título de bibliografia um elenco amplíssimo incluindo discografia e um catálogo de “cines”, registrando, que “no puedes perderte…” (págs. 110- 111). São filmes que envolvem a prática e a performance jurídicas, as dimensões da pedagogia (método e didática) e o próprio conhecimento, inclusive do Direito.

Com esse mesmo intuito vale mencionar os trabalhos de Luis Carlos Cancellier de Olivo – o Reitor martirizado no furor do lawfare que se abateu sobre o país recentemente – e Renato de Oliveira Martinez (http://bit.ly/2Hnergd e http://bit. ly/2HqpKV3 – acesso em 12/01/2016). Vale a pena consultar esses dois registros, para localizar alguns trabalhos que contribuem para o tema e usufruir de um excelente levantamento bi- bliográfico, dentro de um campo de estudo, assinalam os autores, que corresponde a uma área de investigação que compartilha o interesse por um mesmo tema, e que se desenvolve por meio de um conjunto interrelacionado de práticas, técnicas, informações e experiências.

Próximo ao desenho elaborado por Cabrera para a Filosofia, mas com pretensão focalizada em relacionar “filmes para discutir conceitos, teorias e métodos”, localiza-se o livro Direito e Cinema, (Salvador: Edufba, 2004), organizado por Verônica Teixeira Martins Marques, Ilzver de Matos Oliveira e Waldimeiry Corrêa da Silva. Tomo alentado de 543 páginas se presta aos objetivos dos organizadores com o apoio dos seus colaboradores autores e autoras de oferecer à didática do ensino jurídico, a abordagem de relações instigantes entre filmes e conceitos – dos filmes hollywoo- dianos à poesia de metáforas sensíveis – onde o cinema registra a condição de nossa existência com o poder de imagens, sonhos e ideais, de maneira que uma teoria árida ou o caráter de neutralidade dos métodos científicos se tornem acessíveis a partir do poder de imaginação provocado pelo cinema (pág. 10).

Recorto as ricas e plurais contribuições coligidas no livro, com temas que trazem ainda a vinculação em algumas abordagens, também da questão política, por exemplo, a vivida sob a sombra do autoritarismo obscurantista, que resultou em censura, em tortura, em exílio, em assassinato político. No recém- lançado volume, o no 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, et allli (orgs). Brasília: Centro de Educação a Distância – CEAD/NEP/UnB- MJ/Comissão de Anistia, 2015), inclui um texto do cineasta, expoente do documentarismo brasileiro, meu colega de UnB, Vladimir Carvalho (A Resistência em Brasília – um breve testemunho), exemplar a esse propósito (págs. 69-70):

Neste mesmo ano de 1971, por mais que tentasse evitar, confrontei-me com o esquema de repressão do Estado discricionário: meu primeiro longa-metragem, O País de São Saruê, foi liminarmente proibido pela Censura e mais do que proibido, interditado em todo o território nacional. O veredito dos censores, como está no Diário Oficial da União, incluía uma justificativa afirmando que o documentário, imaginem, ‘feria a dignidade e os interesses nacionais’. Decidi, então, que não iria desistir e inscrevi o filme na competição do Festival de Brasília; para minha surpresa, ele foi selecionado. Entretanto, para purgar os meus pecados, a direção da Fundação Cultural, que tinha como presidente do seu Conselho José Pereira Lira, ex-chefe de polícia no Governo do general Eurico Dutra, foi taxativa, e, dias depois, recusou a decisão da Comissão de Seleção. Ficava o dito por não dito. … apelei e fui sozinho e contrafeito ao velho Pereira Lira, homem tosco, servil aos poderosos, herdeiro dos coronéis do Piancó, na Paraíba. Disse-me, seco como uma múmia, despachando-me: ‘Se esse seu filme fosse boa coisa, não teria sido preso na Censura’. Ainda insisti, indo bater na porta do gabinete de Rogério Nunes, manhoso e sibilino chefe da Censura Federal. E aí foi a vez da mais descarada farsa. Apanhou o meu processo e foi despachar com o general Canepa, o temível chefão da Polícia Federal; duas horas depois, voltou dizendo que o Ministro Alfredo Buzaid estava muito preocupado com o que lera na imprensa e, temendo pelo festival, desaconselhara qualquer liberação. Resumo da ópera: o O País de São Saruê foi substituído por uma xaropada esportiva chamada Brasil Bom de Bola, para adular o ditador Médici, que havia recebido em praça pública os vencedores da Copa de 70, objeto do documentário.

Sugiro a leitura completa do texto de Vladimir Carvalho, conforme a referência indicada, em tudo ilustrativo do quadro hostil que o autoritarismo esboça para escapar ao modo artístico de fazer a leitura simbólica do social, do político e do jurídico. E, no ambiente universitário, também afetado por essas interferências, de que modo o conhecimento crítico, nas suas múltiplas expressões, se preserva gerando formas sutis de resistência. Assim também em relação ao cinema. De fato, conforme ele conclui o seu texto (pág. 71): Foi no clima dessa reconstrução (da Universidade de Brasília) e como pedagogia para a superação do período autoritário, que realizei ‘Barra 68 – Sem perder a ternura’”.

Descubro em algumas dessas referências, para além das dimensões a que já me referi, ainda uma outra influência que talvez possa ser considerada a mais notável difundida no Brasil. Refiro-me a que deu origem, sob a baliza dos dois manifestos “do Surrealismo Jurídico” e da “Ecologia dos Desejos”, ao movimento da Cinesofia, criado por Luís Alberto Warat.

Remeto aqui aos anais da 3ª Semana Nacional de Cinesofia, coordenada pelo grande pensador e que aconteceu na Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, em novembro de 2000 (Cuiabá: Unirondon/Almed, 2000), para indicar a existência de um achado memorial dessa rica experiência pedagógica. Mas, para esclarecê-la trago as palavras do próprio Warat, in La Cinesofia y Su Lado Oscuro. La infinita posibilidad surrealista de pensar com la cinesofia (Territórios Desconhecidos. A Procura Surrealista do Abandono do Sentido e da Reconstrução da Subjetividade (Florianópolis: Fundação Boiteux, vol. I, 2004):

Siempre pense que los sueños libertadores se expresan en un lenguage esencialmente poético. Esa es mi proximidad com el surrealismo. Eso me lleva a pensar em el sueño-poesía como antídoto para una sociedad finisecular que solo conserva el desencanto como valor. Bajo estas condiciones, la poesia reabre la posibilidad de una fuerza creadora, nos devuelve la capacidad mágica de ilusionarmos. La poesia funcionando, em situación de transferência, como disparador.

Lo que finalmente me quedo como saldo: Para la cinesofia, el cine es una experiência poética, ética, política y psicoanaliticamente orientada: uma poesia para descifrar. También es una cartografia de la subjetividad y de las relaciones intersubjetivas em la condición trasmoderna. La Idea de una metafísica constitutiva que enfrente, poéticamente, los abismos de la existência. La cartografia que busca outro niveles de subjetivación. La cartografia que busca a constitución del mundo y sus saberes com la misma disponibilidad que puede tener el analista com su paciente, tan diferente a la postura rígida para com el otro que presenta la academia iluminada (la falsa metafísica de los que sienten la necesidad de ser sábios). Una forma de tirarnos a uma pileta de aguas explosivas, para que nos ayude a viabilizar la construcción del futuro. La fuga hacia los lugares que no hacen sentido, para la composición del nuevo… . (págs. 561-562, assim mesmo, em “portunhol”, no original).

Reafirmo o sentido libertário em Warat porque ele é o autor que mais intensamente interpelou o novo pela imaginação e até pelo sonho e ofereceu condições para construir mediações acessíveis para o futuro. E porque, entre essas mediações, sugeriu estratégias dialógicas, entre elas o cinema, aptas, lembrei em um trabalho meu (Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2011), a constituir um trabalho de reconstrução simbólica, imaginária e sensível, com o outro do conflito e de produção com o outro, das diferenças que permitam superar as divergências e formar identidades culturais (pág. 60).

Conforme o próprio Warat nos legou, tal como ficou registrado em sua entrevista concedida a Marta Gama para o Observatório da Constituição e da Democracia (C & D), no 8, outubro de 2006, UnB/FD, Brasília, págs. 12-13 (aliás, a última entrevista, antes de aposentar-se na UnB instalar-se na UFRJ, até o momento de regressar a Buenos Aires e logo falecer):

A arte me mostra que é o melhor caminho para a inclusão social dos excluídos. A recuperação da autonomia, a descoberta de um sentido para a vida é sempre através da arte, porque não pode haver outro modo de fazê-lo que através da poesia. Evidentemente, uma nova concepção do Direito deve ser transdisciplinar, porém de uma transdisciplinariedade que seja mais que uma simples interseção, que habilidades oriundas de diferentes lugares de saber. Precisamos falar de um lugar ‘trans’ que agregue uma nova dimensão no espaço pedagógico: o espaço da sensibilidade e das artes. Assim, a arte nos abre uma infinidade de mundos e ajuda a encontrarmos nosso sentido de vida. Nosso lugar na vida como sentido. A arte nos ajuda a construir um caminho pessoal e único. Creio que a arte também tem um papel muito importante no processo de construção da emancipação individual e coletiva. Na verdade, penso que a única forma de fazermos uma revolução existencial é através da arte. A única forma de fazermos as revoluções moleculares no século XXI.

Detive-me um pouco mais no esquadrinhamento do pensar waratiano porque, de alguma forma encontro a sua influência numa das mais fecundas abordagens atuais sobre as intersecções epistemológicas, pedagógicas e políticas que se desenvolvem, institucionalmente, no Brasil. Aliás, retiro desse texto, integralmente, uma nota de filiação, que transcrevo e que me confirma a localização dessa identidade. Transcrevo a nota:

Possivelmente, a pesquisa mais detalhada realizada no Brasil sobre as diversas intersecções e possibilidades de abordagens investigativas en- tre Direito e Cinema seja a desenvolvida pelo ‘Grupo de Pesquisa em Direito e Cinema’, que atualmente integra o Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ – LADIH. Nesse sentido, ver: MAGALHÃES, J. N.; PIRES, N.; MENDES, G. et al (org.). Construindo memória: seminários direito e cinema. Rio de Janeiro: Faculdade Nacional de Direito, 2009. E também: DE MATOS, Marcus V. A. B.. “Direito e cinema: os limites da técnica e da estética nas teorias jurídicas contemporâneas”. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 231 a 267, jan./jun. 2012.

Trata-se, salienta o autor, – Warat certamente é uma referência para a coordenação desse projeto, referindo-me a Juliana N. Magalhães – de percorrer o caminho no qual, a senda mais promissora continua a ser a que permite “falar da relação entre “cinema e direito” – num modo que – requer, de antemão, rever a “concepção tradicional, normativista de direito”, e abrir espaço para outras formas simbólicas de manifestação do Direito”.

No trabalho de Marta Gama, Entrelugares de Direito e Arte: experiência artística e criação na formação do jurista, editado pela EdUECE, ela parte de uma pergunta visceral: O que pode a arte na formação do jurista? Esta pergunta que ela responde neste livro serviu de guião na sua trajetória de pesquisadora e foi diligentemente trabalhada em sua tese de doutorado “PENSAR É SEGUIR A LINHA DE FUGA DO VOO DA BRUXA” Pesquisa sociopoética com estudantes de Direito sobre a arte na formação do jurista, defendida na Faculdade de Direito da UnB, em 2013, de onde a Autora extrai a matéria da obra.

Nas palavras da própria Autora, tudo começou com a busca pelos infinitos de possibilidades que a arte pode produzir no ensino jurídico, suas potencialidades e seus limites, e com o propósito de investigar tais alternativas. Para isso, empiricamente, antes, foi realizado o Percurso em Direito e Arte em uma abordagem Socio-poética, curso-pesquisa com sete estudantes de Direito – quatro mulheres e três homens –, dos quais seis eram alunos na Universidade de Brasília e um da Universidade Católica de Brasília, a partir de um tema-gerador A arte na formação do jurista.

Do que se trata a Sociopoética? Essa é a questão teórica que dá lastro à pesquisa tal como ela a desenvolve no livro, aprofundando um enquadramento que já havia designado, previamente, como se vê do artigo que assina comigo por ter sido seu orientador A experiência artística e a criação na formação do jurista. Uma pesquisa sociopoética com jovens estudantes de Di- reito do Distrito Federal, publicado em Linguagens, Educação e Sociedade: Revista de Pós-Graduação em Educação da UFPI/ Universidade Federal do Piauí/Centro de Ciências da Educação e Juventude-Teresina: EDUFPU, 2013-353p. Edição Especial Dossiê Educação e Juventudes. ISSN 1518-0743, Ano 18.

No artigo foram apresentados os resultados parciais da investigação de doutorado. Nele já se destaca a abordagem sociopoética de pesquisa, que tem a experiência artística como dispositivo disruptor, um dos seus princípios, e foi o caminho metodológico empregado no curso-pesquisa, proporcionando aos estudantes Formação em Direito e Arte e produção dos dados. Também já se confirma, com a segurança do percurso realizado, que a experiência artística, pela violência com que afeta as subjetividades, deslocando-as da sua zona de acomodação, promove o ato de pensar, que, no dizer de Deleuze e Guattari, fontes da retaguarda teórica do trabalho, nada tem de ordinário, pois somente ocorre diante da brutalidade, da violência, que nos retira da opinião, da representação, da recognição. É no encontro com o caos, a partir dessa violência, que somos provocados a pensar e a criar. Nesse sentido, a experiência artística revela-se um potente dispositivo na formação do jurista, porque, promovendo o ato de pensar e a ruptura com a recognição, oportuniza a criação.

As análises dos dados levaram a duas linhas ou dimensões do pensamento do grupo-pesquisador, que no livro, são examinadas em pormenor. A primeira: o ensino jurídico, linha que desvela o quanto do passado persiste no presente do ensino jurídico; o quanto há linhas de segmentarização constantemente perturbadas, inquietadas, assombradas por práticas e ideias, linhas de fuga, que operam transformações da paisagem. O que demonstra que o ensino jurídico é um terreno conflituoso, um campo de lutas onde práticas arraigadas convivem com ideias e ações educativas transformadoras.

A segunda linha: Arte na formação do jurista demonstra que a experiência artística pela violência com que opera, retira o pensamento da sua imobilidade, promovendo o ato de pensar. Porque pensar, diz Marta – é sempre seguir a linha de fuga do voo da bruxa, já que o pensamento não pensa sozinho, mas apenas diante de algo que o força a pensar. Mas a questão funda- mental do pensamento é a criação. Pois não existe pensamento sem criação, porque pensar é inventar, pensar é fazer o novo. Assim, a experiência artística na formação do jurista é a possibilidade de reinventar conceitos jurídicos, produzir novas possibilidade para o Direito.

Por isso que, os dados produzidos na pesquisa, movida por conceitos peculiares, singulares, constituídos numa voragem criadora do imaginário interpelante, demonstram o turbilhão de ideias e de conceitos desterritorializados e heterogêneos, marca- dos pelas multifaces presentes no entrelugar entre o Direito e a Arte.

Marta se mantem íntegra e fiel neste percurso, na busca de novos caminhos para mapear esse entrelugar entre Direito e Arte. Com Luis Alberto Warat, a voz silente (expressão muito usada por Warat) do discurso de Marta, para ela tudo converge para a possibilidade da instituição do novo. Mais ainda, no campo da pedagogia e do ensino do Direito, seu espaço de movimento, porque é do que se trata, ela afirma, é propor uma revolução da forma de ensino do Direito, através da arte, abrir caminho para uma macro revolução, já que a revolução poética, dos sentidos, de libertação dos desejos, aponta para a própria revolução do homem e do mundo. Da palavra libertada, da imaginação descolonizada, pela magia dos sonhos, pelo ato poético de viver, emerge irresistivelmente uma nova forma de existir, novas maneiras de significar a vida, as relações humanas, uma nova significação imaginária, que rompendo, enfim, com os grilhões de uma racionalidade totalizante (cientificidade moderna, positiva, causal) seja capaz de construir a autonomia individual e coletiva (GAMA, Marta. Surrealismo Jurídico, Arte e Direito: Novos Caminhos. Brasília: Fa- culdade de Direito da UnB. Observatório da Constituição e da Democracia, n. 8, outubro de 2006, p. 06-07).

Na Coluna Lido para Você que mantenho no jornal Estado de Direito, publiquei a algum tempo uma recensão do livro infantil A Rua de Todo Mundo. Carolina Nogueira. Brasília: Longe/ Edição da Autora. 2 edição, 2015. ISBN 978-85-916451-0-). Neste livrinho a autora fala e ilustra uma obra, diz ela que nasceu da generosa colaboração dos meus amigos do mundo todo, numa história da maior rua do mundo, a mais legal de todas. A rua de todo mundo. Uma rua na qual os vizinhos são ao mesmo tempo diferentes e bem parecidos. Eu cheguei a esses livros “infantis” de Carolina Nogueira, da forma como em geral se chega a essas histórias escritas para crianças, mas que nos alcançam de modo inesperado.

Curiosamente, porém, meu primeiro contato, aliás, não foi com a escritora mas com a produtora de um instigante projeto Feirinha do Quadrado (https://www.feirinhadoquadrado.com. br/) que me convidou para participar de uma live abrindo a sessão de debates do projeto, para discutir o tema Quem tem direito a Brasília? Tal como se pode ver na página, a descrição da proposta estava assim orientada:

No primeiro debate, a Feirinha do Quadrado 2020 tem a alegria de receber o ex-reitor da UnB José Geraldo de Sousa Júnior, ideólogo do Direito Achado na Rua. Ele discute conosco e com Luísa Porfírio e Guilherme Black, da ONG No Setor, como o direito à moradia, à livre circulação e ao lazer é distribuído na cidade de Brasília. Pessoas que moram na rua, vendedores ambulantes, pessoas que não moram no Plano Piloto: quem tem direito a Brasília? Em que contextos os espaços urbanos são apropriados de maneira real, para além de eventos temporários?

A minha primeira intervenção foi exatamente, a pedido da moderadora, esclarecer o sentido e o alcance da expressão O Direito Achado na Rua. Falei das condições políticas e teóricas que abrem o tema do Direito às teorias críticas que o articulam ao social e não apenas às normas. Sustentando que os direitos são relações, não são quantidades. São as dimensões do humano que se realiza na história, no movimento das subjetividades que se emancipam. E não artefatos que se depositam em prateleiras legislativas e que se empoeiram e se fadigam em face das transformações que operam na sociedade.

Por isso a metáfora da rua, para designar o espaço público, o lugar popular do poder como declama Castro Alves (O Povo ao Poder: pois quereis a praça?/ Desgraçada a população/ Só tem a rua de seu…); ou Cassiano Ricardo (Sala de Espera: Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de “lá fora”./ Em seu oceano que é ter bocas e pés/ para exigir e para caminhar./A rua onde todos se reúnem num só ninguém coletivo./ Rua do homem como deve ser:/ transeunte, republicano, universal./ Onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da procissão, do comício,/ do desastre, do enterro./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento…); ou em Marshal Berman (Tudo que é Sólido Desmancha no Ar), aludindo à rua como o espaço no qual, em seus encontros e desencontros, ao reivindicar liberdade, justiça, cidadania e direitos, a multidão se transforma em povo. Ou em Marx, em quadra que Roberto Lyra Filho traduziu e tomou como metáfora para simbolizar a sua concepção de Di- reito: Kant e Ficht buscavam o país distante/ pelo gosto de andar no mundo da lua/ eu por mim tento ver, sem viés deformante/ o que pude encontrar bem no meio da rua.

Por isso a imediata identificação desse tema comum, no meu projeto de pesquisa – O Direito Achado na Rua – e no livrinho de Carolina Nogueira – A Rua de Todo Mundo – Um lugar onde tão lindas quanto as diferenças que existem entre as culturas são as semelhanças que aproximam todas as crianças do mundo. Assim, transformado em mote, fio condutor, para mostrar as disputas interpretativas e de apropriação da cidade, enquanto não formos capazes de vivenciar e compartilhar a cidade de modo solidário, ao invés de disputar projetos de cidade, conforme acentuaram meus colegas de live.

Observe-se a atualidade do discurso higienista, refeita na intenção de “revitalização do Setor Comercial Sul” recuperado para a especulação imobiliária sem nenhuma política social de compensação para os seus usuários, apesar de todas as formas de inserção social nas políticas públicas de direito urbanístico e mais ainda de direito à cidade. O discurso do Governo distrital, e as práticas repressivas, violadoras de direitos e destituintes do uso livre da cidade, permanece o mesmo que o proferido pelo antigo prefeito de São Paulo, depois Presidente da República Washington Luís, sobre o projeto de recuperação da Várzea do Carmo (durante o seu mandato municipal entre 1914 e 1919), esvaziado de sua apropriação de uso para integrá-lo ao âmbito capitalista das trocas e da mercadorização, o que ainda se vê, na adiantada capital do estado, a separar brutalmente do centro comercial da cidade os seus populosos bairros industriais, é uma vasta superfície chagosa, mal cicatrizada em alguns pontos, e, ainda escalavrada, feia e suja, repugnante e perigosa, em quase toda a sua extensão. (…):

É ai que, protegida pelas depressões do terreno, pelas voltas e ban- quetes do Tamanduateí, pelas arcadas das pontes, pela vegetação das moitas, pela ausência de iluminação, se reúne e dorme e se encachoa, à noite, a vasa da cidade, em uma promiscuidade nojosa, composta de negros vagabundos, de negras edemaciadas pela embriaguez habitual, de uma mestiçagem viciosa, de restos inomináveis e vencidos de todas as nacionalidades, em todas as idades, todos perigosos. (…)

Denunciado o mal e indicado o remédio, não há lugar para hesitações porque a isso se opõem a beleza, o asseio, a higiene, a moral, a segurança, enfim, a civilização e o espírito de iniciativa de São Paulo.

Os fundamentos que orientam a minha posição jurídica no tocante às questões que o debate suscita estão no nono volume de O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito Urbanístico (http://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/17), que vem ampliar a série e é apresentado em um momento político que as liberdades democráticas, núcleo central do direito à cidade, encontram-se fortemente ameaçadas. Esperamos, assim, que as palavras aqui escritas ganhem vida e sirvam como repertórios de legitimação para as práticas insurgentes de resistência e de reinvenção das formas de sociabilidade democratizantes e libertárias em que nossas trajetórias pessoais e coletivas se inserem (https://correiodolivrodaunb.wordpress.com/2020/11/09/ introduçao-critica-ao-direito-urbanistico/).

Ao fim e ao cabo, procurei, como se pode ver em minhas locuções na live, recuperar o sentido de polis que o social reivindica para o projeto de Brasília, e que orienta a ação e o discurso sobre a cidade, na disputa entre consumo e cidadania, e que precisa ir além da civitas e da urbs, a cidade bela e funcional, pensada no projeto e usufruída por sua elite descendente dos pioneiros e com sensível tensão com os descendentes dos candangos, e inserir na interpretação da cidade o lugar que só a história de protagonismos pode inscrever.

Assim, recuperei a noção de cidade educadora para pensar respostas a essas tensões e o fiz resgatando texto de coluna que mantive na Revista do Sindjus DF – Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF (Ano XVII, no 59, junho/julho de 2009, p. 5). Com efeito, em 1990, em Barcelona, na Espanha, por iniciativa da Associação Internacional de Cidades Educadoras, realizou-se o 1º Congresso Internacional de Cidades Educadoras. Ao final desse Congresso foi elaborada uma Carta das Cidades Educadoras, chamada Declaração de Barcelona, contendo definições e princípios pelos quais se definem compromissos que levam a orientar os impulsos educativos da cidade.

Uma cidade pode ser considerada educadora quando nela, além dos vários modos de ocupação de espaços, nos quais se realizam múltiplas interações e experiências do conviver, são disponibilizadas incontáveis possibilidades educacionais, contendo em si elementos importantes para a formação integral de seus habitantes.

A cidade contém, de fato, como assinala a Carta de Barcelona, um amplo leque de iniciativas educadoras, de origem, intenções e responsabilidades diversas. Engloba instituições formais, intervenções não formais com objetivos pedagógicos preestabelecidos, assim como propostas ou vivências que surgem de forma contingente mas que favorecem a disposição para o aprendizado permanente de novas linguagens e que oferecem oportunidades para o conhecimento do mundo, o enriquecimento individual e o seu compartilhamento de forma solidária.

No Brasil, já são oito os municípios que assinaram o termo de compromisso da Carta de Barcelona, entre eles São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. São cidades que podem, assim, trocar experiências bem-sucedidas segundo esses valores e que passam a desenvolver uma identidade constituída por investimentos culturais para a formação das pessoas que nela convivem. Elas procuram, enquanto cidades educadoras que pretendem ser, converter seu espaço urbano em “escola” e, na intencionalidade de suas atribuições, se oferecer como mediação para o desenvolvimento pleno de seus habitantes, contribuindo para que eles se façam sujeitos e cidadãos.

Com efeito, ainda conforme a Carta de Barcelona, a cidade só será educadora quando reconhecer, exercitar e desenvolver, além de suas funções tradicionais (econômica, social, política e de prestação de serviço), uma função educadora cujo objetivo é a formação, pr moção e desenvolvimento de todos os seus habitantes.

Normalmente são identificados atributos para designar uma cidade educadora, a partir da constatação de que ela tem um governo eleito democraticamente e seus dirigentes se empenham em incentivar projetos de educação para a cidadania. Mas a análise histórica e social de qualquer cidade facilmente leva a identificar ações organizadas de movimentos sociais ou de comunidades de vizinhança que representam inúmeras iniciativas e experiências carregadas de sentido educador, por se caracteriza- rem como processos qualitativos de novas sociabilidades.

O notável nesses processos é a construção de uma consciência social mais elevada. Aí reside o fator educador por excelência, na medida em que as pessoas que dele participam acabam conhecendo melhor as situações que fundamentam as decisões relativas à sua cidade e vivenciam de forma efetiva a experiência democrática.

É possível pesquisar uma cartografia dessas práticas a partir de experiências apresentadas em congressos (www.edcities.bcn. es) ou em coletâneas que as registram, como a coleção Cidades Educadoras (Editora Cortez/Instituto Paulo Freire/Cidades Educadoras América Latina) disponível nos sites www.paulofreire. org e www.cortezeditora.com.br.

Elas são muitas e vão desde as práticas de orçamento participativo às de educação para a democracia, direitos humanos e cultura da paz. O que revelam de comum é o efeito irradiador, intercultural e mobilizador das redes e das instituições que se articulam nessa lógica de inclusão e de solidariedade, revelando o caráter aberto e irradiante da proposta de cidade educadora.

Abordo todas essas questões propostas no Painel, embalado também pela leitura de uma dissertação que orientei no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB, com o título imaginativamente interpelante de Oralituras Munduruku;

As Histórias Contadas e a Justiça Cognitiva. O estudo tem como ponto de partida as mensagens coletadas nos livros de Daniel Munduruku, autor de literatura indígena, em geral escritas para o imaginário infantil – As Serpentes que Roubaram a Noite e Outros Mitos; Meu Avô Apolinário: Um Mergulho no Rio da (Minha) Memória; Todas as Coisas São Pequenas, Memória de Índio – Uma Quase Autobiografia – sob a forma de transmissão de conhecimentos pelos guardiões da memória aos mais jovens, diz Catherine Fonseca Coutinho, proponente da pesquisa. Com certeza essa leitura veio me empurrando para o encontro com a literatura infantil de Carolina Nogueira, ela também instigando a compreender que todas as coisas têm um ciclo; criar, cultivar, ajudar a dar frutos, deixar ir: uma planta, uma ideia, um trabalho, um sonho, um amor, um livro, a vida.

Creio que sua expectativa se refere aos desafios e às tarefas atuais que se colocam para esse modo de conhecer e de realizar o Direito, tal como procurei acentuar em livro (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (coord.). O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015). Cuida-se, nessa obra que conta com um coletivo de pesquisadores do Grupo de Pesquisa com a mesma denominação, de pôr em relevo, pensamento e ação de operadores que sabem exercitar a compreensão plena do ato de realizar o Direito, rejeitando a falsa oposição entre o político e o jurídico, ao entendimento de que, para se realizar, “a justiça não deve encontrar o empecilho da lei”. É aí que reside o protagonismo dos provedores de uma justiça poética, capazes de apreender o Direito a andar pelas ruas porque, “quando anda pelas ruas, colhe melhor a vida nos seus contrastes e se prolonga pela clarividência da observação reduzida a aresto”, como já se disse certa feita em homenagem a essa estirpe de juristas.

“Que a marreta do padre Lancelotti, para mim a mais contundente declaração de direitos e de manifestação por Justiça, esmague as serpentes e os sistemas antipovo enquanto alimenta pobres e abriga em sua igreja povo de rua”. Não é simples, nem fácil, comprometer-se com esses direitos. Lembra Eduardo Galeano: a justiça (e muitos governos), como as serpentes, só morde os descalços (https://www.brasilpopular.com/ossos-de- boi-arroz-e-feijao-quebrados-e-pe-de-galinha-fome-no-brasil/).

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

sábado, 13 de abril de 2024

 

Anistia Coletiva: efetivação da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil

Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF

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Certas circunstâncias que as tensões da conjuntura tornaram candentes, acabaram trazendo muita vivacidade para os eventos ligados aos 60 anos do Golpe Civil-Militar de 1964. Mostrei a repercussão dessas tensões em artigo da Coluna O Direito Achado na Rua, aqui no Jornal Brasil Popular, 60 anos do Golpe de 1964: Memória, Verdade mas também Justiça. Razões para o Nunca Mais(https://brasilpopular.com/60-anos-do-golpe-de-1964-memoria-verdade-mas-tambem-justica-razoes-para-o-nunca-mais/).

Talvez por isso, e pelas razões que indico no meu artigo ligadas ao modo como repercutiu uma manifestação ou diretriz do Presidente Lula sobre a questão, mas também pelo simbólico (60 anos) da comemoração (no sentido de rememorar, não de celebrar), nunca o tema da memória, da verdade e da justiça foram tão postos em debate.

E continua. Agora mesmo, no dia 25 de abril, faço a conferência inaugural – Direitos Humanos na Ditadura – em simpósio organizado na Universidade de Brasília (CEAM e Departamento de História), sob o tema interpelante: Há 60 Anos – Um Golpe! Laceração da Democracia & Ditadura no Brasil.

Laceração diz bem sobre as inquietações que nos convocam e nos posicionamentos que nos mobilizam. Voltando ao meu texto no Jornal Brasil Popular, cuidei desses fundamentos e interpelações ao co-organizar o livro O direito achado na rua: introdução crítica à Justiça de Transição na América Latina, que pode ser conferido em https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf.E não posso deixar de considerá-los em face da grande mobilização, tanto de ativistas quanto de personalidades, no transcurso dos dramáticos acontecimentos que atentaram contra a Constituição, as instituições e a democracia brasileiras.

Coloquei em relevo os quatro pilares da Justiça de Transição – direito à memória e à verdade; reparação; responsabilização penal; e reforma das instituições democráticas e de segurança. Para, à luz desses elementos, salientar o que não se pode perder de vista é que a Justiça Transicional admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente não só processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre os delitos, conceder reparações, materiais e simbólicas às vítimas, mas também reformar e ressignificar as instituições responsáveis pelos abusos e educar para a democracia, a cidadania, os direitos humanos e para a não repetição desses atentados.

Agora, quero ainda mergulhar nesse verdadeiro punctumdolens a partir do que me pareceu o mais notável registro entre todos os eventos programados desde o 31 de março, ou antes, quando a USP outorgou post mortemdiplomas a estudantes vitimados pela ação cruenta da ditadura, o que se seguirá em 21 de abril, junto com a celebração do aniversário da UnB, medida igual, para repor o projeto de vida de Honestino Guimarães, brutalmente interrompido (https://brasilpopular.com/unb-diploma-honestino-ato-de-reparacao-por-dano-a-projeto-de-vida-2/).

Refiro-me ao ato marcante da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) em conceder, no dia 2 de abril, reconhecimento aos primeiros pedidos de anistia coletiva da história do País, às comunidades indígenas Krenak, do norte de Minas Gerais; e Guyraroká, do Mato Grosso do Sul, que tiveram, assim, a reparação coletiva formalizada e receberam o pedido de desculpas do Estado brasileiro.

Com efeito, em sessão com alto simbolismo, a comissão revisou a negativa dada aos Krenak e Kaiowá no governo anterior e reconheceu as violações de direitos humanos sofridas por eles durante a ditadura militar. Ajoelhada, a presidente do colegiado, Enéa de Stutz e Ameida, minha colega na Faculdade de Direito da UnB, pediu desculpas ao povo Krenak pelas violências cometidas pelos não indígenas nos últimos 524 anos. Logo em seguida, a comissão declarou como anistiada a comunidade Guyraroká, do povo Kaiowá. A liderança da comissão, então, repetiu o gesto com um pedido de desculpas em nome do Estado brasileiro.

Recorro ao voto da relatora do processo da comunidade Guyraroká, a conselheira (primeira conselheira indígena) Maíra Pankararu:

O caso que hoje analisamos carrega consigo um caráter emblemático e simbólico, representando um marco de reconhecimento cultural e histórico das violações perpetradas contra grupos que compartilham identidades afins. Tal reconhecimento não apenas valida as experiências desses grupos marginalizados, mas também serve como fundamento sólido para a adoção de medidas eficazes de não repetição.

Por isso, a decisão de aprovar este voto não se limita apenas ao cumprimento de formalidades legais, mas também constitui um passo significativo em direção à construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, onde as violações do passado são reconhecidas e enfrentadas de maneira responsável e comprometida com a promoção dos direitos humanos e da dignidade de todos os cidadãos.

Como tive a oportunidade de defender em minha dissertação de mestrado apresentada perante a Universidade de Brasília,

A Organização das Nações Unidas (ONU) discutiu a aplicação dos princípios da justiça de transição aos povos indígenas. Em julho de 2013, o Mecanismo de Peritos em Direitos dos Povos Indígenas da Comissão de Direitos Humanos (EMRIP/HCR), em sua sigla em inglês) apresentou um estudo sobre o acesso à justiça na promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas. A parte final desse estudo foi dedicada à análise da capacidade dos processos de verdade e reconciliação em promover o acesso dos povos indígenas à justiça. O estudo considera os mecanismos ligados à justiça transicional como possibilidade de garantir o acesso dos povos indígenas à justiça, com relação ao legado das violações de direitos humanos nas sociedades que passaram por conflitos ou regimes repressivos (ONU, A/HRC/EMRIP/2013/2).

Os processos de justiça de transição envolvendo povos indígenas, de acordo com os peritos da ONU, devem ser coerentes com as expectativas desses povos e devem considerar sua visão de como a justiça e a paz serão alcançadas. Suas experiências coletivas de colonização e as causas fundamentais dos conflitos devem ser abordadas e todas as violações de direitos humanos devem ser remediadas, incluindo a perda de sua soberania, de suas terras, territórios e recursos e as violações de tratados, acordos e outros arranjos estabelecidos entre eles e o Estado (ONU, A/HRC/EMRIP/2013/2).

Os Princípios Atualizados para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos através da Ação de Combate à Impunidade (E/CN.4/2005/102/Add.1) e os Princípios Básicos e Diretrizes sobre o Direito à Recurso e Reparação para Vítimas de Violações Graves do Direito Internacional dos Direitos Humanos (Resolução 60/147 da Assembleia Geral) compõem o quadro normativo internacional e operacional para a abordagem da justiça transicional baseada nos direitos humanos da ONU. Esses documentos normativos preveem um sistema de justiça abrangente apoiado no direito à verdade, direito à justiça, direito à reparação e na garantia de não-repetição (ONU, A/HRC/EMRIP/2013/2, p. 19-20).

 

Há outros enunciados no voto de Maíra. Eles não são novidade para mim que li sua dissertação de mestrado na UnB – “Nossa história não começa em 1988”: o direito dos povos indígenas à luz da justiça de transição. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2023 – e sobre ela escrevi uma recensão (https://estadodedireito.com.br/nossa-historia-nao-comeca-em-1988-o-direito-dos-povos-indigenas-a-luz-da-justica-de-transicao/).

No voto Maíra recupera questões candentes que fazem parte da agenda de debates do Grupo de Pesquisa coordenado por sua Orientadora e que aparecem por exemplo, no livro organizado por Eneá de Stutz e Almeida, a atual presidenta da Comissão de Anistia – http://justicadetransicao.org/a-transicao-brasileira-memoria-verdade-reparacao-e-justica-1979-2021/ (A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), Salvador: Soffia10 Editora, uma publicação do Grupo de Pesquisa Justiça de Transição, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília).

O livro, dizem os organizadores (Eneá de Stutz e Almeida) “atualiza, complementa e sistematiza ideias e conceitos iniciados em textos anteriores. A autora analisa a anistia política implementada a partir de 1979 no Brasil: uma anistia da memória, que não impede a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Estuda os mecanismos da justiça de transição brasileira até o ano de 2021, concluindo que o País vive uma justiça de transição reversa”.

Para contribuir para estancar essa reversidade, Maíra agora com assento na Comissão e de sua dissertação, como se fora uma carta de intenções, cujos termos já se podia divisar na Introdução de sua Dissertação porque ali, com linguagem elegante e profundamente encarnada a Autora fixa o seu pressuposto que é  fundamentar-se em “políticas de memória, justiça e reparação [que] são necessárias para permitir a transição democrática após regimes ditatoriais, conflitos armados ou outras situações de graves violações de direitos humanos, por permitirem a assimilação do significado dessas violências, a devida responsabilização dos envolvidos, a justa reparação às vítimas e a conscientização ampla acerca do ocorrido, a fim de que não haja nem esquecimento, nem repetição”, porém, na medida em que “identificam e tratam de casos de violência contra os Povos Indígenas”, e que permitam organizar estratégias como justiça de transição, embora conforme ela designe – pág. 18 – “a justiça transicional [que] não se reduz a uma cartilha de mecanismos para tratar de violações sistêmicas dos direitos humanos: é também o reconhecimento de que uma nação está passando por uma mudança monumental ou que precisa fazê-lo. Por isso, para o novo governo, a justiça de transição para os Povos Indígenas deve ser uma prioridade”.

Ela, de fato, considera esse processo necessário ao “momento histórico da política brasileira, descrevendo o processo de aldeamento da política como uma estratégia de sobrevivência dos povos indígenas” (pág, 19), embora constate que “os estudos de justiça de transição são um campo novo e em processo de maturação. A literatura especializada não se dedicou às questões da justiça de transição para os povos indígenas e desconhece a temática dos direitos indígenas. O meu interesse com esse trabalho é contribuir com o debate e avançar na conquista dos direitos transicionais para os povos indígenas” (pág. 17).

É nesse ponto que Maíra define seu tema de estudo. Segundo ela, desenvolvido para responder duas perguntas: “1) como a ausência de implementação dos mecanismos de justiça de transição para os povos originários do Brasil legitima a continuidade de graves violações dos direitos humanos? 2) Quais são os obstáculos para a implementação dos mecanismos da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil?”, a partir das quais formula o “objetivo geral da pesquisa [que] consistiu em avaliar a transição brasileira desde 1988, uma vez que pouco avançou na efetivação de mecanismos de reparação e não-repetição em relação às violências sofridas pelos povos originários durante a ditadura militar, mostrando as insuficiências da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil e criticando o caminho que a reparação brasileira percorreu”.

Questões bem postas e que confrontam a Autora com duas perspectivas. A primeira, originária de sua posição político-epistemológica – ser indígena e querer contribuir de modo teórico para a disputa hermenêutica que o tema comporta. A segunda, circunstancial. Entre a admissão no Mestrado e a conjuntura atual de retomada democrática da governança com um projeto de sociedade emancipatório e descolonizador, com a contenção do autoritarismo de modelo fascista (ao menos na acepção de Umberto Eco que o caracteriza numa perenidade que não se isola no passado factual que conturbou o mundo ocidental na segunda metade do século XX), que promove a exceção e que nega titularidade subjetiva de direitos aos povos indígenas e na exceção realiza verdadeira necropolítica no limite do genocídio, a condição peculiar de que Maíra passa a se investir da qualidade de membro integrante indígena da Comissão Nacional de Anistia.

Há uma questão que a interpela no duplo plano com o qual essas perspectivas se confrontam. Diz a própria Maíra (pág. 17-18): “A anistia brasileira após o fim do regime ditatorial civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985, da forma como foi feita, não deu conta de reparar os povos indígenas Para que isso acontecesse seria necessário ampliar ou mesmo criar nova legislação e novas formas de reparações coletivas. Insuficiente para os povos indígenas, a justiça de transição gera como consequência violências bastantes claras, a exemplo da tese do marco temporal, que propõe que só sejam reconhecidos os direitos aos territórios que estivessem ocupados na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, desconsiderando as expulsões e os esbulhos praticados contra os povos indígenas, inclusive durante o período da ditadura”.

Ou seja, como ela, diz, não deu conta nem no sentido estrito da anistia propriamente dita, atribuída a uma Comissão especial para conferi-la às situações inscritas no estatuto que a institucionalizou; nem no sentido ampliado de memória, verdade e justiça, que permitiria um alcance expandido de seus enunciados (pág. 15):

O processo de superação dos erros e traumas do passado apenas começou com o trabalho realizado pelas comissões da verdade, mas a reconciliação com o passado não se esgota com os esforços de uma comissão que funciona por um tempo limitado e sob um mandato específico. O dano associado às injustiças históricas continua hoje. Infelizmente, os crimes cometidos contra os povos indígenas nas Américas não pertencem apenas ao passado.

É preciso reconhecer que muitos dos desafios contemporâneos enfrentados pelos povos indígenas estão enraizados em erros do passado e que as injustiças e violências históricas de longa data, inclusive em relação à colonização, à invasão e à apropriação das terras, territórios e recursos dos povos indígenas que permanecem sem solução, constituem uma afronta contínua à nossa dignidade.

No contexto atual, os povos indígenas enfrentam uma série de desafios não apenas para lidar com o legado e a continuidade das violações de seus direitos humanos, mas também para promover o acerto de contas, a busca da verdade, a reparação e a construção de instituições confiáveis recomendadas pelas CVR. Mesmo tendo as CVR reconhecido, em seus relatórios finais, a responsabilidade dos Estados pelos crimes cometidos e tendo afirmado o direito à memória, verdade, justiça, reparação individual e coletiva e à garantia de não-repetição como parte da reparação integral a que têm direito os povos indígenas, as condições sociais, políticas e econômicas dos povos indígenas não mudaram muito e muitos povos continuam sendo alvos de violências.

 

É ao influxo desse entendimento que Maíra vem adensar os fundamentos de seu voto:

Não podemos abordar a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva sem considerar a necessidade de defender de maneira intransigente as terras ancestrais indígenas. Essa resistência, levada a cabo de forma heróica pelos Guarani e Kaiowá, ocorre apesar das condições desumanas que enfrentam.

É imperativo registrar que o Estado brasileiro tem falhado de maneira flagrante na garantia dos direitos dos Guarani e Kaiowá. Desde pelo menos a década de 1940, eles têm sido expulsos de suas terras, relegados a pequenas reservas criadas pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), para permitir a livre distribuição dessas terras a particulares pelo governo federal. Com o golpe de estado de 1964 e a posterior criação da FUNAI em 1967, a situação deles se deteriorou, sendo a agência governamental indigenista, na verdade, um instrumento estatal para favorecer a implementação de projetos agropecuários na região, em detrimento das terras indígenas.

Apesar da promessa da Constituição Cidadã de 1988 de demarcar todas as terras indígenas em cinco anos, conforme previsto pelo artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, isso nunca se concretizou. Pelo contrário, os Guarani e Kaiowá vivenciaram a anulação das demarcações de suas terras, com base na aplicação da esdrúxula tese dos marco temporal, sem que fossem incluídos no processo como parte.

São eles que testemunham suas casas de reza serem queimadas como uma verdadeira epidemia. De janeiro de 2020 a fevereiro de 2024 foram 16, em ataques organizados e criminosos. São eles que veem hnadesys e nhaderus perseguidos e assassinados. A taxa de suicídios entre eles é uma das mais elevadas entre os povos indígenas. Continuamente, são expostos a pesticidas, o agronegócio vem sistematicamente envenenando essas pessoas com agrotóxico.

O processo, instruído cuidadosamente pelo MPF, com base na consulta prévia à comunidade Guyraroká, como manda a Convenção 169 da OIT, deixa claro qual voto deve ser emitido hoje. É crucial ressaltar que isso representa o mínimo que o Estado brasileiro pode fazer.

 

Maíra, no voto, resgata as treze recomendações formuladas pela Comissão Nacional da Verdade para a efetivação da justiça de transição para os povos indígenas no Brasil, para assimilá-las às conclusões de seu voto, integralmente aprovadas ao final do julgamento:

  1. a) que seja declarada a Anistia Política Coletiva do Povo Indígena Guarani e Kaiowá, da comunidade Guyraroká, nos termos do art. 1º, inciso I, da Lei n. 10.559/2002, combinadamente com o art. 16 do Regimento Interno da Comissão de Anistia;
  2. b) recomendar à Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS):

b.1) assistência médica semanal por EMSI (Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena);

b.2) efetivação de estudo epidemiológico para verificação de agravos à saúde em decorrência de exposição a resíduos de agrotóxicos;

b.3) assistência médica na área de Saúde Mental, especialmente para a redução de agravos derivados de traumas intergeracionais ocasionadas pelo processo de remoção;

b.4) Construção de um posto de saúde com a disponibilização de remédios pelo SUS.

  1. c) recomendar à União:

c.1) O reconhecimento da área como terra indígena.

  1. d) recomendar ao Ministério de Minas e Energia (MME):

d.1) o acesso à energia elétrica para todos os moradores da comunidade.

  1. e) recomendar ao governo do Estado de Mato Grosso do Sul:

e.1) construção de casas populares para todas as famílias, tendo em vista que a maioria vive em barracas de lonas;

e.2) a devida sinalização e construção de lombadas ou instalação de radares na MS – 278, que passa em frente a aldeia;

e.3) instalação de torre de internet, e recomende-se também este item ao Ministério das Comunicações;

e.4) reforma e ampliação da casa de reza, bem como a construção de um barracão social para eventos e reuniões;

e.5) a disponibilização de transporte público até a cidade de Caarapó

  1. f) recomendar à prefeitura de Caarapó:

f.1) a troca de reservatório de água da comunidade;

f.2) 01 (uma) quadra de esporte para o lazer da comunidade;

f.3) construção de viveiros para o reflorestamento das áreas degradadas, bem como 01 (uma) câmara fria para guardar sementes;

f.4) cascalhamento das estradas principais e vicinais e construção de um ponto de ônibus coberta para os alunos se acomodarem em segurança;

f.5) construção de espaço/barracas às margens da rodovia para a comercialização dos produtos que a comunidade vier a produzir;

f.6) a ampliação da escola e a construção de uma biblioteca com livros de conteúdos referenciados à população indígena.

O voto de Maíra e o julgamento, no contexto de 60 anos passados desde o Golpe, representam bem possibilidades efetivas para um agir, não só na Comissão de Anistia,mas no sistema de governo, para a criação de políticas com o recém criado Ministério dos Povos Indígenas ou para a atuação emponderada do Movimento Indígena para avançar nesse campo. O voto é também um voto de confiança. Eu também sou confiante, na medida de conquistas que vençam o pessimismo da razão com o entusiasmo da vontade.

Mas confesso que me preocupam mais os aliados que os adversários. O juiz Cançado Trindade, por duas vezes Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, exemplar em seus votos de valorização das exigências de reparação para restaurar a dignidade de projetos de vida e projetos sociais, lembrava que o principal obstáculo para integrar os direitos humanos nos sistemas nacionais de direito é o obstáculo do positivismo – o científico e o jurídico – que reduzem o humano na hierarquia da evolução (será o indígena gente como nós?) e o direito ao legal que desconsidera a dimensão antropológica de outras sociabilidades em dinâmica de pluralismo jurídico (aliás, já acolhidas no voto do relator Ministro Fachin no exame da ADPF que discutiu e rejeitou a tese esdrúxula do chamado marco temporal. Com a sua repristinação pelo Senado Federal (embora na iminência de novo rechaço pelo STF), ainda permanece a preocupação: será o direito positivo, legal, capaz de abrir-se a esse reconhecimento?

 

 

(*) Por José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).