quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017


AÇÕES AFIRMATIVAS NO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR: 

COMO TÊM MUDADO A VIDA DOS JOVENS DE ORIGEM POPULAR NO BRASIL?


Ava Carvalho*
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Ibititá é uma pequena cidade localizada no centro-norte do estado da Bahia, Brasil, com menos de 20.000 habitantes. Em uma casa simples com quintal, cozinha ampla e dois quartos – para receber o filho quando chega de viagem – vivem Gilda e Joselito, pais de Fredson, 30 anos. Fred, como é chamado pelos pais, saiu do interior para a capital da Bahia, Salvador, aos 18 anos, com a expectativa de se preparar para a entrada na universidade, após ter concluído a sua formação escolar. Depois de um ano estudando na capital, foi aprovado para o curso de Direito da Universidade Federal da Bahia e não mais retornou à casa dos pais. Segundo ele, até hoje a sua mãe “sente” a sua ausência; Gilda gostaria que Fred encontrasse um emprego em alguma cidade próxima, embora esteja cada vez mais convencida de que ele não volta mais a viver em sua casa.
No final de semana em que fomos visitá-la para a realização de uma entrevista, Fred fez uma surpresa, era o seu aniversário de 60 anos e ela achava que o filho não estaria presente na comemoração. Repetiu inúmeras vezes que estava inconformada por não ter preparado comida para nós e tentava se arranjar com o que encontrava pela cozinha; havia um pouco de tudo sobre uma mesa farta e foi em volta dela que ficamos a conversar durante os dois dias em que se desenvolveu a investigação. Enquanto Gilda cozinhava, Joselito, mais conhecido por Galego, contava-nos inúmeros casos, alguns quase incompreensíveis pelo seu jeito rápido de falar, mas sempre a sorrir e a nos fazer sorrir também. Foi nesse ambiente que comecei a explicar sobre a pesquisa que estava a realizar: um estudo sobre a transição para a vida adulta para pais e filhos pertencentes a uma mesma família, de origem popular, sendo que os pais tiveram as suas trajetórias escolares interrompidas ainda na educação básica e os filhos conseguiram concluir uma formação universitária.
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O Brasil vivenciou no início dos anos 2000 um processo de expansão e democratização da educação superior. Algumas medidas foram adotadas para garantir o acesso das camadas mais pobres da população às universidades públicas, dentre elas, as políticas de ação afirmativa. Segundo Rosana Heringer, em artigo publicado em 2014, cujo título é Um balanço de 10 anos de Políticas de Ação Afirmativa no Brasil, “[…] falar das ações afirmativas no Brasil significa falar de uma experiência de sucesso. Significa analisar uma política que foi criada a partir da pressão de setores da sociedade tradicionalmente discriminados e que, uma vez iniciada sua implantação, vem se ampliando e consolidando ano após ano.”.
A reserva de 50% das vagas de 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia destinada a estudantes de origem popular, que tivessem cursado integralmente o ensino médio público ou da educação de jovens e adultos, foi uma das ações decorrentes dessa pressão, sendo estabelecida através da Lei nº 12.711/2012. Embora a lei tenha sido sancionada em agosto de 2012, de acordo com o portal do Ministério da Educação (MEC), a polêmica sobre a política de cotas se mantém.
Nas redes sociais ou em sites que tratam deste tema, é possível identificar opiniões que consideram a medida discriminatória, segregacionista ou mesmo injusta em relação aos setores médios da população brasileira que investiram na escolarização dos seus filhos, matriculando-os nas redes particulares de ensino básico. O desconhecimento sobre a nova lei e do inegável crescimento em curso da educação superior pública demonstram que é ainda muito precária a compreensão dos brasileiros sobre a importância política e, certamente histórica, das decisões tomadas pela esfera governamental nesse campo, na tentativa de ampliar o acesso de significativo contingente da juventude aos estudos superiores.
Embora essas questões ainda não sejam percebidas de forma consensual pela população, o fato é que os estudantes pertencentes aos setores de origem popular continuam a chegar às universidades, o que promove mudanças significativas nas suas vidas e na vida das suas famílias. Em uma investigação iniciada em 2014, o que busco é compreender como a transição para a vida adulta foi vivenciada pelos jovens de origem popular que passaram pela universidade e como seus pais, que possuem reduzida vivência escolar, também experimentaram essa passagem para a adultez.
No caso que apresento aqui como exemplo, é possível confirmar uma tendência apontada em diferentes estudos que afirma que quanto maior a trajetória escolar, maior o tempo de transição para a vida adulta. Fred teve a sua entrada no mundo do trabalho adiada em relação a seus pais; sua mãe abandonou o sistema educacional aos 15 anos, quando saiu do interior da Bahia e foi morar na cidade de São Paulo.
O sonho de Gilda era o mesmo de muitos brasileiros nascidos no Nordeste e que acreditavam em uma mudança dos seus padrões de vida ao migrarem para uma metrópole. Os fluxos migratórios para a região sudeste se tornaram muito frequentes na segunda metade do século XX, no Brasil. No entanto, Gilda não consegue alcançar a ascensão social que desejava, lamenta por ter abandonado os estudos e ter se dedicado apenas ao trabalho, e volta a viver com a família, em Ibititá, quando a sua mãe adoece. Já o pai de Fred, Galego, afirma só ter estudado durante 15 dias, apenas para aprender a ler e escrever. Todos os dois passaram a se dedicar exclusivamente ao trabalho, não conseguindo retomar os estudos. A experiência de Fred em relação à escolarização é bastante diferente dos seus pais: ele conseguiu se dedicar integralmente aos estudos durante toda a graduação e esse fato se deve em grande parte às políticas de permanência subsidiadas pelo governo. Além da formação em Direito, realizou um mestrado em Direitos Humanos e Cidadania, na Universidade de Brasília, e atualmente foi aprovado em uma seleção de doutorado em Direito, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O cenário político brasileiro, desde 2016, aponta para uma redução dos investimentos do governo federal no setor educacional, uma ameaça às políticas que permitiram mudanças significativas na vida de jovens como Fred e também na vida de suas famílias. É preciso olhar para o passado, para parte da vida dessas pessoas, na tentativa de compreender as mudanças em curso e aquelas que estão por vir. O debate proposto nessa investigação busca aproximar a Psicologia do Desenvolvimento, mais especificamente os estudos sobre transição para a vida adulta, às análises sociais e educacionais, um modo de compreender as transformações para melhor enfrentar os desafios.
*Ava Carvalho é  doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento na Universidade Federal da Bahia, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), membro do grupo de pesquisa Observatório da Vida Estudantil (UFBA), e doutoranda-visitante no ICS-ULisboa.
FONTE: https://liferesearchgroup.wordpress.com/2017/02/21/acoes-afirmativas-no-acesso-ao-ensino-superior-como-tem-mudado-a-vida-dos-jovens-de-origem-popular-no-brasil/

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