quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Entre o legal e o justo, esse sai frequentemente perdendo


Por Jacques Távora Alfonsin
Na edição do jornal Zero Hora de segunda-feira, 25 deste janeiro, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, fez críticas ao ativismo judicial, entendendo como duas das suas principais expressões os chamados direito alternativo e o direito achado na rua. Segundo o seu entendimento, aquelas duas iniciativas, a primeira, como se sabe, nascida entre juízes do próprio Rio Grande do Sul e a segunda uma filha de – Roberto Lyra Filho, foram motivadas como uma espécie de reação à ditadura imposta ao país pelos militares nas décadas anteriores ao da implantação da democracia. Se bem estamos interpretando o seu pensamento, elas pretendiam como que compensar os desmandos de um direito legal, à época, por um direito justo. Ele conclui o seu comentário, dando a entender mais do que perguntando, se os problemas explicativos daquele “ativismo”, então, ainda se justificam.
É claro que, nos limites de um simples comentário, não poderia ele nem nós – reconhecida desde logo, pelo menos de nossa parte, incapacidade para tanto – enfrentar uma questão filosófica de efeitos os mais importantes para a convivência humana como o do conflito histórico, presente em toda a lei, sobre as possibilidades de de ela, efetivamente, garantir justiça ou, pior, servir de instrumento hábil e oficial para preservar a injustiça.
Já é um ótimo sinal a favor do direito alternativo e do direito achado na rua, atestar o ex-ministro de que ambos se opunham à injustiça, o que impõe se concluir o “direito legal” de então pretender impor injustiça. Ao seu questionamento final, entretanto, perguntando se os problemas de então ainda exigem a mesma vigilância, já que se vive numa democracia, pode e deve ser oposto um outro e óbvio questionamento: a democracia, como a vigente no Brasil, impede que o “direto legal”, por si só, garanta a justiça?
Não garante, e não garante porque, pelo menos no âmbito da atuação do Poder Judiciário, por mais subjetiva que seja a concepção de cada juiz/a sobre a justiça, essa não leva a mínima chance de ser garantida sem o pressuposto de estar fundamentada na verdade e, por mais subjetiva que seja e concepção de cada um/a também, sobre a verdade, até o Código de Processo Civil tratou de reconhecer como objetiva aquela refletida no “fato notório”. Esse, aí até mesmo pelo chamado direito legal, nem pode ser desconsiderado como prova irrefutável.
Ora, o fato mais notório, a verdade mais evidente da realidade brasileira é a da injustiça social, inerente ao nosso sistema econômico, político e, por isso mesmo, também jurídico, senão na letra, na cultura, na ideologia e no “espírito” com que se impõe e reproduz, seja ele avaliado em seus perversos e injustos efeitos sociais no passado, durante a ditadura, seja ele avaliado agora, durante a democracia.
Daí a incômoda pergunta: qual é a/o juiz/a mais justo/a? o/a que se apóia exclusivamente na lei, no chamado direito legal, em conflitos nos quais a causa da sua eclosão se deve à injustiça social, ou aquele/a que, em situação semelhante ou idêntica, faz valer as duas alternativas comentadas pelo ex-ministro? Se a resposta a um tal questionamento tomar posição o em favor da/o primeira/o, como lamentavelmente ocorre na maioria dos casos, a lei estará traindo o povo, a verdadeira justiça, o verdadeiro direito, a verdadeira democracia, o verdadeiro Estado, mais não servindo do que para reproduzir a injustiça.
Isso tudo sem se falar no quanto é cômodo, para qualquer juiz/a, dispensar o trabalho de “se envolver” “sentir” os efeitos das suas sentenças, transferindo – escondendo seria melhor dizer – a sua responsabilidade para a lei. Toda a abstração desta tem capacidade para fingir que pode o que não pode; esgotar todo o direito e garantir toda a justiça. Ao ex-ministro faltou o -reconhecimento, também, dessa verdade.

Leonardo Boff

Uma pedagogia para cuidar do planeta e da humanidade


Por Comissão Justiça e Paz
A Associação Nacional de Educação Católica (ANEC) no Distrito Federal realizou na manhã desta sexta-feira (22), a sétima edição do Dia ANEC. Evento que já é tradição no calendário das escolas católicas na Capital do país, reunindo cerca de 700 educadores no Colégio Madre Carmem Salles, em Brasília.  O tema principal escolhido para esta edição foi “Casa Comum: Nossa Responsabilidade”, celebrando a Carta Encíclica “Laudato Si’ Sobre o Cuidado da Casa Comum”, lançada pelo Papa Francisco em 2015 e trazendo, conforme o próprio título do encontro indica, o tema da Campanha da Fraternidade 2016, para mobilizar a atenção pedagógica dos professores.

O evento teve a participação do arcebispo da arquidiocese de Brasília, Dom Sergio da Rocha, que o abriu e discorreu sobre “a alegria de poder ver tantos educadores reunidos para juntos refletirem sobre um tema tão importante.  Segundo Dom Sergio, todos devem valorizar a Casa Comum, pois a Casa Comum é todo lugar que vivemos. Em seguida, a coordenadora do Conselho da ANEC-DF, Eliane Moreira, falou sobre a responsabilidade dos educadores em fazer com que a escola católica esteja à altura da tarefa educacional que lhe é confiada”.
Participou também do Evento o professor Luiz Vicente Ferreira, que abordou o tema ”Competências, habilidades, valores e espiritualidade: Uma reflexão necessária a humanos sustentáveis”.  O tema principal foi proferido pelo teólogo, ecologista e escritor, Leonardo Boff. A explanação do franciscano mereceu o seguinte resumo que se encontra na página WEB da Entidade (http://www.umbrasil.org.br/project/anec-associacao-nacional-de-educacao-catolica-do-brasil/): “explanou sobre a biodiversidade brasileira, explicando também a crise ecológica que o país tem enfrentado.  “A grande crise do mundo moderno é não cultivar da vida o espirito, sendo ele amoroso com as coisas do coração com excelência” disse.  Na ocasião, Boff falou também sobre a falta de cuidado com a água, segundo ele, ou formam uma aliança global ou veremos a destruição da humanidade. Boff disse também sobre a importância da terra e as causas que trazem transtornos para a vida animal, vegetal e humana.  “A  terra não está representando a Casa Comum, pois devemos respeitá-la e preservá-la”, alertou Boff”.
Realmente, o conferencista, cujos conceitos foram claramente acolhidos na Laudato Si’, enfatizou a importância que é preciso atribuir na atenção com o planeta e com a humanidade, pondo em relevo as quatro etapas que o cuidado ecológico deve realizar, nos planos ambiental, social, mental e integral, âmbito em que o cuidado se espiritualiza, porque, conforme disse, o cuidado não é somente “técnica de gerenciamento de bens escassos” é, sobretudo, a consideração da “terra como mãe”, ou seja, é arte que se realiza no “cuidado de nossa Casa Comum”.
Ele também exortou os professores presentes ao Evento, a ter em conta “as grandes ameaças que pesam sobre a existência e sobre a Casa Comum”: o Estilo de vida, a escassez de água potável, o aquecimento global e a insustentabilidade  do planeta. Na sua exposição ele demonstrou o quanto a persistência na reprodução desses processos que ameaçam a vida no planeta levam a uma crise “civilizatória, impondo a necessidade de outro tipo de relação com a terra”.
Partindo da leitura do Livro da Sabedoria 11, 24-26, Boff chamou o exemplo profético do “Soberano amante da vida”, para dar realce ao magistério do Papa Francisco, por isso mesmo, e, pela primeira vez, dirigido a toda a humanidade, “na alegria da esperança”, tão necessária ao irrecusável desafio: “ou nos salvamos todos, ou todos pereceremos”.
A Comissão Justiça e Paz de Brasília se fez presente ao Evento, por seu presidente José Marcio de Moura Silva, seu secretário José Carlos Soares Pinto e pelos membros Daniel Seidel e José Geraldo de Sousa Junior, estreitando os laços que foram estabelecidos durante a Caminhada da Paz. Pôde assim, colher dois depoimentos de homenagens prestadas pelo conferencista (4C39A78F-4EF2-4806-AB78-49EFE868287D.mp4). A primeira, a Raimundo Caramuru Barros, o a época padre incumbido por Dom Helder Câmara de organizar o Plano Pastoral, denominado Pastoral de Conjunto, em resposta à convocação do Papa João XXIII no sentido de dar conteúdo teológico-pastoral e caráter técnico e participativo ao planejamento pastoral, conforme as diretrizes do Vaticano II, da Lumen Gentium e da eclesiologia de comunhão. A outra homenagem foi ao Prof. Doutor José Geraldo de Sousa Junior, autor do projeto de formação de assessorias jurídicas populares, denominado O Direito Achado na Rua, concepção do jurídico que é gestado no social, na dimensão ética da misericórdia, que é estalão ético para aferir a legitimidade das leis e que é o horizonte de realização do sentido de dignidade que muitas vezes só se realiza para além delas (Misericordiae Vultus, 20-22). 



LEONARDO BOFF: UMA PEDAGOGIA PARA CUIDAR DO PLANETA E DA HUMANIDADE

A Associação Nacional de Educação Católica (ANEC) no Distrito Federal realizou na manhã desta sexta-feira (22), a sétima edição do Dia ANEC. Evento que já é tradição no calendário das escolas católicas na Capital do país, reunindo cerca de 700 educadores no Colégio Madre Carmem Salles, em Brasília. O tema principal escolhido para esta edição foi “Casa Comum: Nossa Responsabilidade”, celebrando a Carta Encíclica “Laudato Si’ Sobre o Cuidado da Casa Comum”, lançada pelo Papa Francisco em 2015 e trazendo, conforme o próprio título do encontro indica, o tema da Campanha da Fraternidade 2016, para mobilizar a atenção pedagógica dos professores. O evento teve a participação do arcebispo da arquidiocese de Brasília, Dom Sergio da Rocha, que o abriu e discorreu sobre “a alegria de poder ver tantos educadores reunidos para juntos refletirem sobre um tema tão importante. Segundo Dom Sergio, todos devem valorizar a Casa Comum, pois a Casa Comum é todo lugar que vivemos. Em seguida, a coordenadora do Conselho da ANEC-DF, Eliane Moreira, falou sobre a responsabilidade dos educadores em fazer com que a escola católica esteja à altura da tarefa educacional que lhe é confiada”. Participou também do Evento o professor Luiz Vicente Ferreira, que abordou o tema ”Competências, habilidades, valores e espiritualidade: Uma reflexão necessária a humanos sustentáveis”. O tema principal foi proferido pelo teólogo, ecologista e escritor, Leonardo Boff. A explanação do franciscano mereceu o seguinte resumo que se encontra na página WEB da Entidade (http://www.umbrasil.org.br/project/anec-associacao-nacional-de-educacao-catolica-do-brasil/): “explanou sobre a biodiversidade brasileira, explicando também a crise ecológica que o país tem enfrentado. “A grande crise do mundo moderno é não cultivar da vida o espirito, sendo ele amoroso com as coisas do coração com excelência” disse. Na ocasião, Boff falou também sobre a falta de cuidado com a água, segundo ele, ou formam uma aliança global ou veremos a destruição da humanidade. Boff disse também sobre a importância da terra e as causas que trazem transtornos para a vida animal, vegetal e humana. “A terra não está representando a Casa Comum, pois devemos respeitá-la e preservá-la”, alertou Boff”. Realmente, o conferencista, cujos conceitos foram claramente acolhidos na Laudato Si’, enfatizou a importância que é preciso atribuir na atenção com o planeta e com a humanidade, pondo em relevo as quatro etapas que o cuidado ecológico deve realizar, nos planos ambiental, social, mental e integral, âmbito em que o cuidado se espiritualiza, porque, conforme disse, o cuidado não é somente “técnica de gerenciamento de bens escassos” é, sobretudo, a consideração da “terra como mãe”, ou seja, é arte que se realiza no “cuidado de nossa Casa Comum”. Ele também exortou os professores presentes ao Evento, a ter em conta “as grandes ameaças que pesam sobre a existência e sobre a Casa Comum”: o Estilo de vida, a escassez de água potável, o aquecimento global e a insustentabilidade do planeta. Na sua exposição ele demonstrou o quanto a persistência na reprodução desses processos que ameaçam a vida no planeta levam a uma crise “civilizatória, impondo a necessidade de outro tipo de relação com a terra”. Partindo da leitura do Livro da Sabedoria 11, 24-26, Boff chamou o exemplo profético do “Soberano amante da vida”, para dar realce ao magistério do Papa Francisco, por isso mesmo, e, pela primeira vez, dirigido a toda a humanidade, “na alegria da esperança”, tão necessária ao irrecusável desafio: “ou nos salvamos todos, ou todos pereceremos”. A Comissão Justiça e Paz de Brasília se fez presente ao Evento, por seu presidente José Marcio de Moura Silva, seu secretário José Carlos Soares Pinto e pelos membros Daniel Seidel e José Geraldo de Sousa Junior, estreitando os laços que foram estabelecidos durante a Caminhada da Paz. Pôde assim, colher dois depoimentos de homenagens prestadas pelo conferencista (4C39A78F-4EF2-4806-AB78-49EFE868287D.mp4). A primeira, aRaimundo Caramuru Barros, o a época padre incumbido por Dom Helder Câmara de organizar o Plano Pastoral, denominado Pastoral de Conjunto, em resposta à convocação do Papa João XXIII no sentido de dar conteúdo teológico-pastoral e caráter técnico e participativo ao planejamento pastoral, conforme as diretrizes do Vaticano II, da Lumen Gentium e da eclesiologia de comunhão. A outra homenagem foi ao Prof. Doutor José Geraldo de Sousa Junior, autor do projeto de formação de assessorias jurídicas populares, denominado O Direito Achado na Rua, concepção do jurídico que é gestado no social, na dimensão ética da misericórdia, que é estalão ético para aferir a legitimidade das leis e que é o horizonte de realização do sentido de dignidade que muitas vezes só se realiza para além delas (Misericordiae Vultus, 20-22). Por Comissão Justiça e Paz

sábado, 23 de janeiro de 2016

Cuidado: uma epifania pode revelar o injusto

Patrick Mariano “Ora, aconteceu que, indo eu já de caminho, e chegando perto de Damasco, quase ao meio-dia, de repente me rodeou uma grande luz do céu”. (Atos 22:6) Merecer la vida, no es callar y consentir/Tantas injusticias repetidas/ Es una virtud, es dignidade/Y es la actitud de identidade/Más difinida! - Honrar la vida, Eladia Blázquez É Saramago, em uma das primeiras páginas mais belas da literatura, quem abre o livro Levantados do Chão com uma pérola: “O que mais há na terra, é paisagem”. O capitalismo faz com que se possa adaptar o mestre português para dizer que o que mais há na terra é a sua tentativa de estabelecer o egoísmo e a indiferença para com o outro como tônica da relação entre homens e mulheres. O contrário do egoísmo é a alteridade. Da indiferença, o amor[1]. O amor é uma experiência transfomadora e revolucionária, não à toa Che Guevera dizia que “todo verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor”. Nas relações humanas é a consciência do outro, no sentido do respeito e compreensão (cuidado), quem deveria conduzir os encontros cotidianos. O capitalismo risca a alteridade, a ternura e o cuidado do mapa. Em seu lugar, faz com que o medo ocupe lugar de destaque. Isso faz com que nos tornemos indeferentes à dor alheia, aos seus dramas e formas de ver a vida. Incapazes de ocupar o lugar do outro, passamos a naturalizar processos e situações de violência e injustiça. Mas ainda há esperança. *** No início dos anos 2000, em um acampamento sem-terra no Pontal do Paranapanema, interior de São Paulo, um coronel da polícia militar, após realizar uma ação de busca e apreensão nos barracos de lona à procura de carne e macarrão – produto de dois caminhões saqueados no dia anterior por aqueles trabalhadores e trabalhadoras – chegou em casa e teve um daqueles momentos a que podemos chamar de epifania. Algumas horas antes da transformação, durante o dia quente, adentrou naqueles casebres e viu a situação daquelas famílias. Já tarde da noite, pegou o telefone e discou para uma das lideranças do MST. Ligou porque não conseguia dormir. Ao ver os próprios filhos em casa, depois de ter visto os filhos daqueles homens e mulheres que quase nada possuíam além da própria dignidade, perdeu o sono, mas ganhou algo revelador: a consciência ética da alteridade. Durante quase uma hora quis saber sobre realidade da vida cotidiana de Josés e Diolindas, donos das casas as quais havia entrado em cumprimento a ordem judicial. Queria saber como poderia fazer para ajudar. Aquele homem treinado durante décadas com o rigor das academias militares a comandar, sufocar sua alteridade e enxergar no outro um inimigo, rompeu numa tarde de sol forte no interior de São Paulo muitas das amarras que foi formatado a ter. Desprendeu-se e encontrou o que sempre esteve ali ao lado ou mesmo dentro de si. Nunca mais foi o mesmo. *** Procuro há muitos anos por uma reportagem do JN. A cena era o cumprimento de uma ordem judicial que determinava a destruição de uma casa. O oficial de justiça acompanhava o trabalho do motorista da máquina que transformaria em entulhos a sala, quarto, cozinha e a memória de uma família que viveu durante muitos anos naqueles poucos metros quadrados. O motorista, surpreendendo a todos, antes mesmo de dar a estocada fatal, paralisou. Abaixou a cabeça sobre o volante da máquina e se recusou a destruir. O oficial então mandou que a polícia o obrigasse. Tentou mais uma vez e estancou em sua própria consciência. O homem que comandava a máquina, um simples operário, foi mais humano e teve a dignidade que faltou ao magistrado que decidiu. Preso por desobediência à ordem judicial, foi conduzido aos prantos até a viatura policial. Recebeu, porém, enquanto caminhava, aplausos. Sinal de que a humanidade não residia somente nele ou naquela casa, mas também era compartilhada por quem acompanhava a cena. Aquele obreiro não somente viveu uma epifania como a irradiou. São essas cenas que vez ou outra nos surpreendem e resgatam certo otimismo em meio à insensibilidade que se firma como tônica do sistema de produção capitalista. Sistema que não somente sufoca a existência do outro, como faz com esses exemplos sejam quase que uma clarividência em meio à cegueira reinante. É que com o o fim da história defendido pelos neoliberais o sentido da existência não passa pela ideia do justo, bom e belo da vida. A solideriedade é vista como algo pontual. Pouco importa se a ordem judicial para destruição da casa era justa ou se a fome impingiu aqueles trabalhadores a buscarem comida. A engenharia burocrática do sistema de justiça costumeiramente ignora essas nuances. O ensino jurídico não trabalha com a ideia de justiça, mas sim com o positivismo mais tacanho. O estudante é treinado, assim como o policial, a não se questionar. A falta de estímulo ao estudante de direito para criticar a realidade diante de si fabrica futuros atores jurídicos que não pensam, apenas aplicam o que imaginam ser a lei. A lei, não a justiça. *** Em um vídeo postado nas redes sociais sobre o processo de ocupação das escolas em São Paulo, uma das crianças deu aula de direito a um policial que, sem mandado judicial, quis entrar e retirar os estudantes. Em que pese a nobreza das epifanias individuais pelas quais todos temos a oportunidade de passar, são os processos coletivos de tomada de consciência que possuem maior capacidade de transformação da realidade. O trabalhador sem terra que decide ocupar o latifúndio percebe, no processo, que o fazendeiro é atendido sem demora pelo juiz que determina a ação policial de despejo e que a mídia o tratará como bandido. Se dá conta que a engrenagem do Estado protege o proprietário e que isoladamente não é nada, apenas força de trabalho. Daí porque o termo “Uni-vos” ganha destaque no em um dos documentos políticos mais significativos dos últimos séculos. As lutas coletivas por moradia no espaço urbano revelam as contradições de uma cidade pensada para poucos e, ao se retirar o véu que encobre as suas nódoas, aquele trabalhador ou trabalhadora entende porque só pode acessar a cidade, com tudo o que ela tem de melhor a oferecer, para trabalhar. É por isso que a ação coletiva dos pobres desperta tanto medo nas classes dirigentes e são demonizadas pela grande mídia. A luta pela redução do preço das passagens é perigosa ao sistema porque questiona o poder de grandes grupos empresariais junto aos governantes. É a polícia, portanto, quem deve receber os manifestantes e com eles tratar se valendo da sua usual cordialidade. *** Outro dia, em um desses vídeos da internet, uma mulher sozinha protegia um ladrão no Rio de Janeiro da sanha de linchadores. Ouviu muitos impropérios e quase foi agredida. Mas ficou ali, entre a irracionalidade daqueles homens, o ladrão e sua temerária decisão de agir de acordo com a sua consciência e ética. Foi repreendida inclusive pelo policial que tardou a chegar. Aquela mulher é uma metáfora da tragédia dos nossos tempos, mas também, esperança de que o capitalismo ainda não nos roubou tudo. Atordoado, me concentrei na análise daqueles homens que agrediam a mulher e buscavam o sangue do ladrão. Por que agredir alguém já rendido, indefeso e mais fraco? De onde irradia esse ódio para tamanho desiderato? Falhei na tentativa de compreender. Talvez estivesse a mirar o lado errado da cena. Era aquela mulher, corajosa, e íntegra que deveria tentar compreender. O que a levou a arriscar sua integridade física pelo ladrão? O que levou Saulo, aquele que perseguia os cristãos a se tornar Paulo no caminho de Damasco? Por que aquele motorista da máquina se recusou a cumprir a ordem judicial? São essas as perguntas que devem feitas e essas as pessoas que merecem uma análise profunda por que nos devolvem aquilo que temos de mais pleno e merecedor no sentido de honrar a vida. Patrick Mariano é escritor. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando.

sábado, 16 de janeiro de 2016

HONRADEZ E DIGNIDADE*

José Geraldo de Sousa Junior “Vá em paz e tranquilo, poucos, muito poucos, podem deixar um tal legado de extraordinária honradez e de invejável dignidade”. Estas as palavras finais do discurso fúnebre que o filho Luis Carlos proferiu ao lado de féretro de seu pai, o advogado Antonio Carlos Sigmaringa Seixas. As palavras ilustram e dão sentido a uma trajetória marcante que o título da notícia de ontem, deste Correio Brasiliense, sobre o seu passamento, sintetiza tão bem: “Sigmaringa deu vida à democracia”. Com a notícia, uma foto, com força jornalística e senso histórico, captura cena vigorosa: Sigmaringa, com vários de nós advogados, em outubro de 1983, nos damos os braços num movimento de resistência à ditadura, que naquele instante procurava interditar a atuação da OAB e o protagonismo dos advogados em defesa do Estado de Direito e da Democracia. Na foto, o Doutor Sigmaringa Seixas, à frente, com o olhar determinado, nos leva para o lugar de resistência, com a firmeza de sua liderança de ex-Presidente da OAB e do exemplo de um exercício profissional, em tempos difíceis, forjado na convicção de que a advocacia é uma profissão, mas é também a representação de uma função social; é técnica, mas é também ética; é ciência, mas ao mesmo tempo política. Como função social, carregada de sentido ético e político, seu primeiro dever é defender as instituições, preservar a Repúbica, lutar pela realização plena da Democracia: é o que Sigmaringa Seixas fazia ali em 1983, na defesa da OAB, naquele momento, ponto de inflexão para a ação protagonista de reconstrução da Democracia; como atribuição técnica, o exercício bem constituído de um agir profissional, para a afirmação dos direitos constitucionalizados em leis legítimas e para oferecer reconhecimento aos direitos reivindicados nos processos sociais inscritos em liberdades alargadas e nas lutas de movimentos para o reconhecimento de novas juridicidades e plena participação. Sigmaringa Seixas foi sempre vanguarda e sujeito protagonista nesses processos. Não só na OAB, mas em todos os espaços de afirmação da cidadania. Na UnB, por exemplo, nas crises em que a universidade foi vítima, em sua rebeldia para resistir às várias intervenções que sofreu, Sigmaringa Seixas era referência para a defesa de professores, estudantes e servidores e cobraria preço alto à repressão, contra as prisões arbitrárias, as expulsões por motivação ideológica, os inquéritos de conveniência. E não apenas por meio de petições formais, burocráticas, mas por habeas corpus e mandados de segurança despachados no calor dos enfrentamentos. Sigmaringa Seixas foi, em suma, advogado da cidade, da cidadania. Fundou o CEBRADE (Centro Brasil Democrático), atuou na formação dos comitês de anistia, pela constituinte, pela representação política e pela autonomia do Distrito Federal. Conforme disse este Correio Braziliense, e testemunhamos todos e todas em sua despedida, sem jamais perder o afeto, “deu vida à democracia”. * Publicado emCorreio Braziliense, 16/01/16, pág. 5

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O que as favelas revelam sobre leis, juízas/es e administrações públicas?

Jacques Távora Alfonsin Tem qualquer sentido fazer-se uma pergunta dessas? Não deveria fazer-se um questionamento invertido, de como a gente da favela se comporta em obediência às leis, às sentenças e aos atos normativos das administrações públicas? – Mesmo nos limites de uma resumida opinião sobre assunto que envolve a vida e a casa de milhões de pessoas pobres, no Brasil e mundo, aqui se pretende sugerir que essa realidade também “julga” leis, sentenças e atos administrativos. Excluir de cogitação leis e direitos relativos a esses espaços de terra, não se deixar impressionar por contradições visíveis presentes na interpretação e aplicação da lei sobre eles e os sujeitos de direitos ali abrigados, servem de exemplo da possibilidade de a gente pobre favelada “julgar” a lei, a administração pública e o Poder Judiciário, quando, em vez de sujeito de direito, é vítima de cada uma dessas autoridades. Antes do mais, as favelas comprovam uma ocupação de espaço de terra por multidão de gente pobre sem liberdade de escolha por falta de capacidade econômica para pagar outro onde morar, seja por compra, aluguel, permuta ou outra espécie de quitação de valor. Muito raramente uma necessidade ao nível da sobrevivência como essa é levada em consideração nos juízos de autoridade sobre conflitos relacionados com a terra, embora a erradicação da pobreza e o direito de moradia figurem, a primeira como um dos objetivos fundamentais da República (art. 3º, inciso III) e o segundo, como um dos direitos humanos fundamentais (artigo 6º), ambos da Constituição Federal. Tanto essa como o Estatuto da Cidade, por outro lado, exigem bastante da propriedade privada a obrigação de ela não servir de barreira contrária a tal direito pelo descumprimento da sua função social. Em segundo lugar, existem contradições típicas de interpretação jurídica do tratamento dispensado a esse espaço físico favela pelo Poder Público, aí incluído o Judiciário, já na sua identificação como “clandestino”, em assimilado e até culturalmente inconsciente preconceito, característicos de toda a distância injustificada da realidade, que esse Poder conserva. Clandestina, como se sabe, é aquela situação de uma determinada coisa como escondida, fora da visão pública e, por via lógica de consequência, infringente de lei. A realidade da favela, porém – até pela feiura, amontoado desordenado de barracos, casas de papelão e lata, “gatos” utilizados para servir-se de luz, água ligada de qualquer jeito, vias estreitas de acesso às moradias, sarjetas fétidas e lixo, além da companhia de ratos e insetos – de clandestina não tem nada. Tudo quanto há de injustiça numa realidade pobre como essa está muito bem estudado num livro recente de Raquel Rolnik, “A guerra dos lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças” (São Paulo: 2015, Boitempo Editorial). Ela é apresentada por Flavio Villaça como professora da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, especializada em política habitacional, planejamento e gestão da terra urbana. Foi relatora especial para o Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de 2008 até maio de 2014, diretora de planejamento da cidade de São Paulo (1989-1992), Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades do Brasil (2003-2007) e Coordenadora de Urbanismo do Instituto Polis (1997-2002). Sob um currículo dessa expressão, são de suas práticas e estudos algumas observações quase sempre ignoradas pelas leis, pelos atos administrativos e pelas sentenças. Sobre a causa do cada vez maior estreitamento do espaço de terra urbana para famílias pobres, sua advertência é muito clara: “Em tempos de capitalismo financeirizado, em que a extração de renda sobrepõe-se ao mais-valor do capital produtivo, terras urbanas e rurais tonaram-se ativos altamente disputados. Isso tem produzido consequências dramáticas, especialmente – mas não exclusivamente – nas economias emergentes. As dinâmicas que acompanham a liberalização dos mercados de terras estão aumentando a pressão do mercado sobre os territórios controlados por comunidades de baixa renda. Isso ocorre num contexto global em que a terra urbanizada não está disponível para os grupos mais pobres. Comunidades ficam, então, sob a constante ameaça de espoliação de seus ativos territoriais.” {…} “As políticas de planejamento, administração e gestão da terra – inclusive das terras públicas – têm enorme impacto na construção da matriz segurança/insegurança. No entanto, assim como nas políticas habitacionais, a propriedade privada individual ganhou hegemonia sobre todas as outras formas de reforma e administração fundiária no mundo.” Além de demonstrar como essa estratégia não está dando resultado, ela agrava um “pluralismo de conflitos”, mantendo o povo pobre favelado numa paradoxal “transitoriedade permanente”, na precisa observação da autora. Essa é a razão de ela reclamar com sobradas razões: “Ao tratar dos assentamentos populares das cidades ao redor do mundo, a categoria “ilegal” não deve – e não pode – ser absolutizada. Em vários casos, a maioria dos habitantes vivem em sistemas de posse que podem ser considerados como paralegais, semilegais ou quase legais, tolerados ou legitimados por leis costumeiras ou pelo simples uso ou tradição, reconhecidos ou simplesmente ignorados pelas autoridades.” Não se pode negar a existência crescente, particularmente em alguns tribunais do país e algumas administrações públicas, de colocarem a questão toda das favelas, dos cortiços, dos loteamentos considerados “irregulares” nesse outro patamar aconselhado pela Raquel. Ainda falta muito, todavia, para a interpretação e a aplicação da lei reconhecer a sua própria insuficiência para solucionar problemas dessa gravidade social e não preferir supri-la com afirmação de pura autoridade, como acontece na maioria das execuções de decisões liminares em ações possessórias carregadas de violência. Ou seja, tanto a lei, como a sentença e o ato administrativo só chegam ali para punir os efeitos da injustiça social, sem jamais conseguirem remover as suas causas. Quantos juristas ficarão escandalizados com posses de terra identificadas como “paralegais, semilegais ou quase legais”. É por não ter coragem e ousadia, como essas da Raquel, que a tradição doutrinária do passado, ainda vigente na interpretação e aplicação das leis sobre posse, continua ignorando existir, ao lado da classificação civilista desse tipo de sujeição de coisas, (dos tipos posse objetiva, subjetiva, justa, injusta, de boa ou de má fé, nova ou velha…) um outro tipo de posse, uma posse necessária, material, concreta, indispensável à vida, como a exercida por pessoas sem outro teto, numa favela, ou sem terra num acampamento rural. A leitura dessa obra da Raquel, assim, faria muito bem a legisladoras/es, autoridades da administração pública e juízas/es, se não pelo dito aqui, pelo testemunho de David Harvey sobre ela, registrado na contracapa do livro: “Uma denúncia devastadora da incapacidade dos nossos sistemas político e econômico atuais de oferecer abrigo decente em condições de vida dignas para a maioria dos cidadãos do planeta. Como relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da ONU, Raquel Rolnik adquiriu um cabedal incrível de experiência global relativa a questões de moradia, ora materializado neste livro. É uma obra fantástica, que articula e entrelaça de forma admirável o debate teórico e um rol impressionante de testemunhos pessoais colhidos em primeira mão ao redor do mundo.”