sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Cartas de Bologna: solidariedade à fabulosa Atlantide!


Por Patricia Vilanova Becker*
Segunda-feira, 05 de outubro. O espaço era pequeno para abrigar corpos e indignações. Pessoas de diferentes idades e identidades se amontoavam na assembleia formada no Centro delle Donne em Via del Piombo para discutir o anunciado despejo de Atlantide que, segundo uma das pessoas presentes, serviu de abrigo “todas as vezes que encontramos umas nas outras as respostas que esse sistema não nos deu”. Ocupada em 1997 e situada em uma das construções da Porta Santo Stefano de Bologna, Atlantide nos últimos 15 anos tem sido a sede de coletivos feministas, queer e punk. Nos últimos três anos, sofre ataques constantes do Comune de Bologna, que interrompeu o curso das negociações que buscavam encontrar um lugar mais amplo para que Atlantide desenvolvesse suas atividades de consultoria queer-transfeminista em saúde e direitos sexuais, bem como o arquivo histórico e o laboratório de pesquisa.
A frieza de Bologna não tinha espaço naquela noite. Corpos sentados em cadeiras, pessoas se esgueiravam do lado de fora das janelas, outras pelas escadas. Tod*s buscavam ouvir o que integrantes de Atlantide tinham a dizer. Microfone em mãos, discurso afiado, olhar desafiador e pronto para luta: “quando os homens azuis chegarem, encontrarão um lugar cheio de coisas e pessoas livres”. Eu sorria. Por dentro, talvez também por fora. Finalmente, pensei, a Atlantide perdida de Bologna havia sido encontrada. Após as falas de integrantes do coletivo Smaschieramenti, que promove a autogestão do espaço junto a outros coletivos, seguiram-se falas de diversas pessoas. Vozes tremiam de indignação diante do iminente despejo anunciado para a semana que iniciava. Atlantide é um “espaço de sociabilidade não mercantil”, afirmavam algumas vozes. E alguém complementou: “Atlantide é o lugar onde experimentamos a potência revolucionária da sociabilidade queer”.
O PD, partido que se autodenomina como centro-esquerda, havia se tornado um governo de direita. Mas Atlantide não se renderia: “Faremos com que seja visível aquilo que estão fazendo. Quem toca Atlantide, deve sujar as mãos!”. As pessoas presentes sabiam que Atlantide era um espaço pequeno demais para gerar um interesse material do Comune. A questão, enfatizavam, era sobretudo simbólica. Despejar Atlantide faz parte de “um plano de normalização do espaço público”. Mas “transbordaremos em todas as partes!”. Atlantide será espalhada por toda a cidade, diziam. Ao final da assembleia, o plano consistia em uma série de atividades para resistir ao despejo, que começavam desde o intitulado “café da manhã fabuloso” que começaria no dia seguinte às 7h da manhã, e se estendiam ao longo da semana. Naquela noite chuvosa, voltei para casa energizada pelo espírito de amor e resistência.
Não tive forças para o “café fabuloso”, mas na quarta-feira à noite tive meu primeiro encontro com o espaço que abrigava Atlantide. O chamado “cassero” de Porta Santo Stefano, construída no século XIII, é uma edificação que protegia uma das portas da Bologna murada. O espaço histórico ganhou um enorme laço cor de rosa que envolvia toda a construção do lado de fora. Por dentro, cartazes, grafites, camisinhas coloridas, balões e outras decorações “fabulosas” explicavam por que em Atlantide “as coisas e as pessoas eram livres”. Uma mesinha no centro compartilhava água e alguns aperitivos. Ao redor, um círculo de pessoas aguardavam, assim como eu, para desbravar Atlantide. Ao final, integrantes do coletivo apresentaram uma parte dos trabalhos do arquivo histórico queer-transfeminista, tomando o cuidado de destacar que não se tratava de um processo de “museificaçao”, mas de uma história viva e em permanente transformação. As pessoas presentes foram convidadas para assistir ao show punk que ocorreria na noite seguinte. Se eu soubesse que aquela seria minha ultima oportunidade de entrar no espaço que abrigou Atlantide até então, se soubesse que os homens azuis chegariam em dezenas para tocar o corpo de Atlantide, seguramente teria ido ao show. Mas não fui.
Sexta-feira pela manhã, 09 de outubro, ao passar de ônibus em frente à Atlantide, lá estava ela nas mãos violentas do Estado. Amontados, sorrindo, com camburões e viaturas, a política violenta, feita dentro dos gabinetes, assumia sua forma mais genuína através da polícia. Na porta de Atlantide, imediatamente após o despejo, foi construído um muro para impedir qualquer futura ocupação. Um muro cinza feito para apagar as fabulosas cores de Atlantide. No sábado seguinte, um grande “corteo” humano inundou Bologna que seguia alagada pela chuva. Um protesto feito com guarda-chuvas coloridos, capas cor de rosa, corpos, faixas, vozes, sonhos. Novamente, centenas de pessoas de diversas identidades se somavam em uma marcha através da cidade. A polícia bloqueou a passagem para algumas saídas, encurralando-nos. Nada diferente da modalidade brasileira. Corajosamente em frente à polícia, manifestantes isolaram a entrada com uma longa faixa cor de rosa e escreveram no muro cinza “ATLANTIDE OVUNQUE”, que significa “Atlantide em todos os lugares”. As coisas e o corpos livres encontrados dentro de Atlantide continuam a se espalhar por Bologna e pelo mundo, de onde chegam mensagens de solidariedade. Atlantide continua transbordando.
*Patrícia Vilanova Becker, integra o Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua; mestranda em Direito pela UnB, participa atualmente do Programa Erasmus Mundus Master´s Degree in Women's and Gender Studies na Universidade de Bolonha e Universidade de Oviedo.

**Fotos pela autora no 'corteo per Atlantide' em 09 de outubro de 2015 - Bologna.

Para conhecer mais sobre Atlantide: http://atlantideresiste.noblogs.org

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