quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Pelo direito de participar: participa, Salvador!

Sabrina Durigon Marques

Diógenes Rebouças[1] é o nome do renomado arquiteto baiano que concebeu o harmonioso prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia - FAU-UFBA, o qual sediou o evento “PDDU: para que e para quem?” em julho deste ano.
Tão rico quanto sua obra foi o debate promovido pelo IAB-BA, com o apoio de diversas instituições, do qual tive a honra de participar representando o Direito Achado na Rua, por indicação do professor José Geraldo de Souza Junior.
A cidade de Salvador está debatendo seu novo PDDU - Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. Ou melhor, deveria estar. A nova legislação que vai regular o planejamento e o desenvolvimento urbano de Salvador pelos próximos anos está sendo elaborada pelo executivo municipal e, após apenas quatro meses de debates, estima-se que o projeto seja enviado à Câmara Municipal esse mês, em setembro.
O Estatuto da Cidade, lei nº 10.257 de 2001, principal lei que estabelece as orientações da política urbana no Brasil, traz a gestão democrática das cidades como uma diretriz da política urbana, que deve ser seguida pelo poder executivo em sua elaboração:
Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
(...)
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
(...)

Mas o Estatuto não se limita a essa normativa genérica, ele dedica o Capítulo IV para listar os possíveis instrumentos utilizados para garantia da participação, como debates, audiências e consultas públicas, instrumentos adequados para o debate que Salvador vem fazendo.
CAPÍTULO IV
DA GESTÃO DEMOCRÁTICA DA CIDADE
Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos:
(...)
II – debates, audiências e consultas públicas;
(...)

Da mesma forma, o Capítulo III é dedicado ao Plano Diretor, sendo que o § 4º do artigo 40 estabelece os requisitos mínimos para seu processo de elaboração.
Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
§ 1o O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.
§ 2o O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo.
§ 3o A lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos.
§ 4o No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;
II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;
III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.
§ 5o (VETADO) (grifou-se)


Além disso, a Resolução nº 25 de 2005 do Conselho das Cidades é específica em dizer como devem ser realizadas as reuniões e audiências públicas para elaboração do Plano Diretor:

Art. 4º No processo participativo de elaboração do plano diretor, a publicidade, determinada pelo inciso II, do § 4º do art. 40 do Estatuto da Cidade, deverá conter os seguintes requisitos:
I – ampla comunicação pública, em linguagem acessível, através dos meios de comunicação social de massa disponíveis;
II- ciência do cronograma e dos locais das reuniões, da apresentação dos estudos e propostas sobre o plano diretor com antecedência de no mínimo 15 dias;
III- publicação e divulgação dos resultados dos debates e das propostas adotadas nas diversas etapas do processo;

Art.5º A organização do processo participativo deverá garantir a diversidade, nos seguintes termos:
I – realização dos debates por segmentos sociais, por temas e por divisões territoriais, tais como bairros, distritos, setores entre outros;
II -garantia da alternância dos locais de discussão.
(...)

Art.6º O processo participativo de elaboração do plano diretor deve ser articulado e integrado ao processo participativo de elaboração do orçamento, bem como levar em conta as proposições oriundas de processos democráticos tais como conferências, congressos da cidade, fóruns e conselhos.
Art.7º No processo participativo de elaboração do plano diretor a promoção das ações de sensibilização, mobilização e capacitação, devem ser voltadas, preferencialmente, para as lideranças comunitárias, movimentos sociais, profissionais especializados, entre outros atores sociais.
Art. 8º As audiências públicas determinadas pelo art. 40, § 4º, inciso I, do Estatuto da Cidade, no processo de elaboração de plano diretor, têm por finalidade informar, colher subsídios, debater, rever e analisar o conteúdo do Plano Diretor Participativo, e deve atender aos seguintes requisitos:
I – ser convocada por edital, anunciada pela imprensa local ou, na sua falta, utilizar os meios de comunicação de massa ao alcance da população local;
II – ocorrer em locais e horários acessíveis à maioria da população;
 III – serem dirigidas pelo Poder Público Municipal, que após a exposição de todo o conteúdo, abrirá as discussões aos presentes;
IV – garantir a presença de todos os cidadãos e cidadãs, independente de comprovação de residência ou qualquer outra condição, que assinarão lista de presença;
V – serem gravadas e, ao final de cada uma, lavrada a respectiva ata, cujos conteúdos deverão ser apensados ao Projeto de Lei, compondo memorial do processo, inclusive na sua tramitação legislativa.

E são justamente essas previsões legais acima que a população de Salvador alega que estão sendo violadas. De acordo com os debates ocorridos, o processo de elaboração do PDDU no Executivo Municipal teria durado apenas quatro meses, e as audiências públicas que deveriam ter ocorrido nesse período teriam sido esvaziadas e descaracterizadas, sem permitir a real participação da população.
De acordo com os relatos, as principais queixas dos cidadãos seriam a falta de publicidade com relação aos estudos realizados; a falta de divulgação com antecedência das audiências públicas e de seu cronograma; a organização dos debates num formato e com uma disposição de tempo que inviabiliza ou prejudica sobremaneira a participação da sociedade civil; a não publicação dos resultados dos debates e das atas das reuniões.
O colóquio teve como resultado a elaboração de uma carta aberta, que foi entregue à Prefeitura, com as seguintes reivindicações:
a)    que não seja enviado o PDDU à Câmara Municipal sem o efetivo debate;
b)    que se completem os estudos necessários, submetendo-os a um processo verdadeiramente participativo de análise e discussão pública;
c)    que apresentem à discussão pública as alternativas de Estrutura Territorial a ser proposta no PDDU;
d)    que se institua um novo período de discussão, no qual o Executivo se digne a examinar as críticas já formuladas, de modo a evitar a adoção intempestiva de processos que comprometam, irreversivelmente, o futuro de Salvador;
e)    que se incorpore ao processo de elaboração e discussão do PDDU as contribuições críticas sintetizadas nessa carta;
f)     que a minuta do Projeto de Lei seja apresentado e discutido publicamente, antes do seu envio à Câmara de Vereadores.

É insuficiente cumprir apenas formalmente, e não materialmente o que diz a lei, especialmente quando se fala em participação popular no direito à cidade num país em que muitos interesses, especialmente os do capital imobiliário, estão representados na estrutura do Estado, imbricados em nosso Parlamento, o que pode facilitar a criação de condições favoráveis para que projetos de lei e políticas públicas que favoreçam seus interesses sejam aprovadas, em detrimento do direito à cidade.
E sabemos que a resistência do poder público em garantir a gestão democrática deve-se ao seu custo: a participação desloca a pauta de prioridades, atrapalha a famigerada celeridade requerida pela Administração e pode ter como resultado proposta diferente daquela almejada por alguns gestores.
Para que a participação popular seja efetiva, mais do que garantir os espaços formais de participação, é fundamental que o estado garanta condições isonômicas de participação, o que significa fazer com que a população compreenda os termos técnicos abordados, garantir que as audiências ocorram em dias e horários variados, permitindo que os trabalhadores conciliem a participação com o trabalho e considerar as sugestões e críticas apontadas.
Não é justo que a população debata em desigualdade de condições com técnicos exclusivamente destacados e remunerados para esse fim, isso fere a isonomia que deve ser garantida pela lei. É dever do estado criar condições para que a lei seja efetivada para garantia do Direito à Cidade, e para isso é necessário que esse debate extrapole os limites do direito formal. Como ressaltou o professor da faculdade de Direito da UFBA Samuel Vida na abertura do evento: “O direito precisa ser devolvido à sociedade, o direito é, antes de tudo, organização da própria sociedade, ordenamento que deve emergir da sociedade, refletindo as contradições que ela tem, e não fantasiando uma neutralidade e um sujeito homogêneo, que do ponto de vista da vida real, concreta, não existe, ou existe apenas como cidadão de papel. Cidadão concreto tem cor, tem sexualidade, tem classe, mora na periferia, ou no centro, vive tragédias e demandas cotidianas que não estão escritas nesse tipo ideal do cidadão de papel.”
Com a efetiva e direta participação da população nos espaços institucionais, por meio dos instrumentos indicados, é que se poderá dizer que ela atua como sujeito que constrói a sua história. É necessário, então, que o direito e achado na rua e forjado pela sociedade seja um passo no caminho da efetivação da justiça.

Sabrina Durigon Marques é advogada urbanista, mestre em Direito Urbanístico pela PUC-SP. Autora do livro Direito à Moradia, da coleção Para Entender Direito e integrante do coletivo Diálogos Lyrianos da UNB. Professora em cursos de graduação e de pós graduação. Trabalhou com assessoria sociojuridica a movimentos sociais no Escritório Modelo da PUC/SP.

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