sexta-feira, 17 de abril de 2015

A Justiça Popular em Cabo Verde

Bruno Mileo
O livro A Justiça Popular em Cabo Verde resulta de pesquisa sociológica realizada em 1983-1984 a pedido do governo daquele país quase uma década após a sua independência. Vivia-se o momento da reconstrução da administração pública cabo-verdiana com dificuldades estruturais a serem superadas e, sobretudo, novas possibilidades a partir da ruptura dos vínculos coloniais e pós-coloniais, perseguindo o socialismo como objetivo político.
Conforme o livro aborda, o momento histórico da independência cabo-verdiana possibilitou reflexões importantes sobre os caminhos para a estruturação da administração da justiça naquele país. Por um lado, o mundo ocidental já vivenciava a crise do modelo hegemônico pautado no sistema de produção capitalista e no colonialismo – reprodutor, portanto, de relações de poder com base na classe e em diferenças socioculturais. Embora tenha ocorrido uma ampliação dos direitos sociais na segunda metade do século XX, o Poder Judiciário não se expande satisfatoriamente e se abrem espaços para o debate sobre a crise do judiciário e a necessidade de reformas.
Por outro lado, naquele momento histórico, foi igualmente possível o contato com experiências de outros países africanos e do leste europeu, uma oportunidade de aprender com outros processos de organização política e administração da justiça de base popular. No continente africano em especial, na medida em que zonas eram liberadas dos domínios coloniais, conseguiam ensaiar formas autônomas de base popular e assente nos costumes, obviamente respeitadas as particularidades de cada país.
Em Cabo Verde, a colônia não conheceu forte investimento na construção de infraestrutura de apoio para a administração colonial em razão da pouca presença de colonos portugueses. Após a independência, a construção de uma estrutura judicial autônoma teve que levar em conta dificuldades humanas, técnicas e financeiras – tais como falta de instalações e falta de profissionais especializados para o exercício das funções. Sob outro enfoque, o caminho estaria aberto para investir em alternativas emancipadoras e mais próximas do cotidiano comunitário para a prevenção e resolução de conflitos. Nesse contexto, os tribunais de zona emergem como prioridade e uma inovação institucional que vigorou em Cabo Verde entre 1979-1991, afastando-se do modelo hegemônico liberal para a administração da justiça e, mesmo, dos modelos de justiça popular instituídos no Leste Europeu e em Cuba.
Os Tribunais de Zona em Cabo Verde dispensavam as necessidades técnicas, materiais e humanas da justiça formal, mas também eram uma aposta forte para promover a pacificação social e atuar como escola política, cultural e social do povo. Previstos na organização judiciária de Cabo Verde, os Tribunais de Zona conjugavam as funções de administração da justiça – com a resolução de litígios a partir da atuação de representantes comunitários indicados como juízes não profissionais – e política de promover a participação popular e a educação comunitária conforme os objetivos políticos comuns.
Os casos julgados pelos Tribunais de Zona eram definidos legalmente pela baixa medida da pena ou valor monetário. No atendimento aos comunitários, no entanto, ocorria certa discricionariedade ao processar uns casos e outros não, conforme fosse possível avaliar a gravidade do conflito ou se antever a eficácia da intervenção da justiça popular. Como os juízes eram membros da comunidade, isso podia ser antecipado com base nos conhecimentos e relações que possuíam no bairro, sem necessariamente de informações constantes de um processo.
O funcionamento de cada Tribunal de Zona tendia a variar bastante, mas prevalecia informalidade e oralidade como características preponderantes. Alguns casos chegavam a ser conciliados logo que a parte procurava o tribunal para prestar queixa, outros podiam nem ser registrados ou autuados devido a previsibilidade de sua fácil solução, ainda que tenham se realizado audiências ou, mesmo, tenham sido sentenciados. Os usos da formalidade e linguagem jurídica eram estratégicos conforme a gravidade do caso ou a probabilidade de recurso, quando os juízes dos Tribunais de Zona necessitavam reforçar sua legitimidade na comunidade ou se relacionar com os tribunais oficiais para o julgamento em grau de recurso.
A proximidade entre juízes e comunidade favoreceria também decisões com maior enfoque no caráter educativo e menos no caráter punitivo de acordo com as características de cada caso, embora os Tribunais de Zona estudados ainda aplicassem mais medidas punitivas do que educativas no tempo da pesquisa. O desejável era que a formação comunitária ocorresse com a participação das pessoas no tribunal, assistindo ou manifestando-se durante as audiências. Apesar da participação comunitária ser um dos principais pilares da justiça popular, a pesquisa observa poucos espaços para que os comunitários participem durante as audiências ou algumas delas que foram realizadas apenas com a presença das partes e juízes, indicando esse como um aspecto a ter cuidado.
Apontar essas questões cumpria com o objetivo da pesquisa em contribuir com a construção da experiência da justiça popular em Cabo Verde, estudá-la sem reduzir a sua complexidade. Nesse sentido, outros pontos merecem destaque no livro, tais como alertar para os perigos da instrumentalização partidária da justiça popular, a relação desta com outros órgãos oficiais e de participação popular, o papel dos juízes no cotidiano de resolução de conflitos comunitários, o espaço das mulheres nos Tribunais de Zona como suas principais usuárias – porém com pouca representação numérica no quadro de juízes, o decréscimo na procura dos Tribunais de Zona em comparação aos primeiros anos de funcionamento.
No contexto ideológico da pesquisa e preocupado em destacar as potencialidades e riscos com base nas experiências históricas de outros modelos de justiça popular, assumindo também o lugar de fala de um cidadão português a fazer recomendações em tão pouco tempo da independência cabo-verdiana; o pesquisador faz opções metodológicas cuidadosas. Adota a metodologia quantitativa para que os dados pudessem demonstrar com eloquência o funcionamento dos Tribunais de Zona. Realiza um trabalho pioneiro na coleta de dados que se encontravam pouco sistematizados em razão da informalidade ou, mesmo, não escritos em razão da oralidade que caracterizavam o funcionamento dos Tribunais de Zona. Por esses motivos, ele demonstra cautela em tirar conclusões com base no universo pesquisado, ao invés de assumir um tom generalizante. Aos dados quantitativos, soma-se a consulta a um interessante acervo de documentos, as entrevistas realizadas e as descrições de observações feitas nos Tribunais de Zonas pesquisados. Sempre, é claro, acompanhados da análise cuidadosa e ponderações pertinentes do pesquisador.
No início da década de 1990, os Tribunais de Zona encerravam as atividades em Cabo Verde. Foi um período curto de funcionamento e investimento em alternativas para a prevenção e resolução de conflitos. O livro tem o mérito de documentar sobre o funcionamento da justiça popular em Cabo Verde, mostrando a criatividade comunitária na solução de litígios e seu potencial emancipatório, mas também apontando problemas e obstáculos a serem vencidos. É importante conhecer a experiência cabo-verdiana e, dialogando com ela, refletir sobre a relação entre estado e participação social, direito e política, formalidade e informalidade na administração da justiça. Sendo questões ainda tão atuais a crise de legitimidade do judiciário e o imperativo de democratizar a justiça, voltar os olhos para os Tribunais de Zona em Cabo Verde é essencial para não desperdiçar uma importante experiência e se poder avançar no sentido de novas formas para a administração da justiça.



[1] Texto de apresentação do livro do professor Boaventura de Sousa Santos na livraria Almedina, Coimbra, Portugal no dia 10.04.2015 O autor é professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC).

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