sábado, 20 de dezembro de 2014

Como Letícia Santos, filha de ex-agricultores sem terra, chegou à faculdade

publicado em 20 de dezembro de 2014 às 16:33, Blog Viomundo por Patrick Mariano, especial para o Viomundo Um amigo me enviou um texto sobre o livro de Jorge Amado A morte e a morte a Quincas Berro D’água. Pediu que publicasse em meu blog Más caras?. Nunca tive muitas pretensões com o blog, sempre foi mais para meu desassossego e crônicas de cotidiano. Mas, gostei muito da sensibilidade da resenha do livro e perguntei quem era o autor ou autora. Descobri que a autora se chama Letícia Santos. É de uma pequena localidade chamada Adustina, no nordeste baiano. Tem 21 anos e é filha de ex-trabalhadores rurais sem terra, hoje assentados da reforma agrária e estudante de Direito da turma Elizabeth Teixeira da Universidade Estadual de Feira de Santana. Junto com outros filhos de trabalhadores rurais, conseguiu chegar ao ensino superior através do PRONERA, programa do Ministério da Educação/Ministério do Desenvolvimento Agrário (MEC/MDA) que busca ampliar o acesso ao ensino superior à população que vive no meio rural. O analfabetismo ainda assombra o meio rural brasileiro. Entre as pessoas de 15 anos ou mais, atinge 23,5%. É quase 5,5 vezes superior ao verificado na zona urbana: 4,3%. Um estudo do Observatório da Equidade alerta que se o “Brasil Rural” fosse um país, teria o 4º pior desempenho entre os países da América Latina e Caribe, melhor apenas que Haiti (45,2%), Nicarágua (31,9%) e Guatemala (28,2%). Resolvi, diante disso, entrevistá-la para o Viomundo a fim de que pudesse falar sobre literatura, lutas, dificuldades no acesso ao conhecimento e um pouco sobre a trajetória de sua vida. A entrevista foi feita através de um chat. Viomundo — Letícia, qual o significado da literatura para você, estudante de Direito e com uma trajetória familiar de luta pelo direito à terra? Letícia Santos – Eu vejo na literatura um caminho a se percorrer. É uma porta que se abre à uma viagem intensa e fantástica. Por isso, é na literatura que eu consigo sentir a magia de uma bela obra literária. Não tenho o hábito de ler tanta literatura, mas cada vez que leio me sinto totalmente envolvida e percebo o quanto me faz bem. A melhor parte de tudo isso é se reconhecer dentro dos personagens e entender como a fantasia literária está ligada à vida real. Viomundo — Jorge Amado escreveu com magia e retratou como poucos o povo baiano, sua simplicidade e as cores da Bahia. Como estudante de Direito você vê a literatura como necessária para o jurista conhecer melhor o mundo em que está metido? Letícia Santos – Claro, não só o jurista. Todos devem aprender a entender melhor o mundo em que estamos e a literatura é um bom caminho para isso porque nos permite entender como os elementos culturais e como as regras sociais que as pessoas estabelecem estão descritas no nosso dia-a-dia. Viomundo – Como foi sua chegada na Faculdade de Direito? Você sempre sonhou em fazer o curso? Conte um pouco da sua trajetória. Letícia Santos – Eu nunca pensei em fazer Direito. Eu costumo dizer que eu não escolhi o Direito, o Direito me escolheu. Em um certo dia, meu pai chegou em casa com a notícia desse vestibular para beneficiários da reforma agraria. Era meu último ano no ensino médio, e resolvi me inscrever. Não tinha nada a perder, até porque mesmo que eu fosse reprovada, já seria uma grande experiência e no fim de tudo isso, felizmente, passei no vestibular. Viomundo – Quais as maiores dificuldades que você encontrou para chegar ao ensino superior? Letícia Santos –Uma das maiores dificuldades foi o medo, pois tudo aquilo era muito novo pra mim. Sair de casa, para uma cidade distante, ficar longe da família, era tão estranho pra mim que cheguei a pensar em desistir, mas hoje agradeço por não ter desistido, e por ter aprendido tanto. Viomundo – Seus pais puderam estudar? Letícia Santos –Eles não completaram o ensino fundamental. Viomundo – Quantas pessoas da sua família têm curso superior? Você vê a academia brasileira distante da realidade dos trabalhadores rurais? Letícia Santos – Eu sou uma das primeiras a fazer um curso superior. A academia aparece como algo distante da realidade dos trabalhadores e hoje se percebe que o saber acadêmico impera sobre o saber popular, e isso faz com que exista uma contradição entre essas duas realidades. Viomundo – Quais seus planos para o futuro? O Direito pode ser um instrumento da transformação social? Letícia Santos – Eu pretendo aproveitar essa oportunidade que a vida me deu porque acredito que o mundo pode ser melhor. O Direito é um instrumento de luta. Viomundo –Você concorda com a frase de José Martí de que só o conhecimento liberta? Letícia Santos –O conhecimento liberta, mas nem sempre o conhecimento é libertador. Viomundo –Depende como é empregado, é isso? Letícia Santos –Depende do sistema. Hoje estamos à mercê de um sistema opressor, que não tem nenhum intuito de que o povo tenha acesso ao conhecimento e de que ele possa se apoderar desse conhecimento. Viomundo – Qual o recado que você gostaria de deixar para milhares de filhos e filhas de acampados da reforma agrária que sonham em um dia ter a terra, mas também romper as cercas do ensino superior no Brasil? Letícia Santos – Para todos aqueles que acreditam num mundo menos egoísta e mais humano, digo que não parem de lutar, nós podemos romper todas as cercas que nos prendem. Patrick Mariano é doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI na Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em direito, estado e Constituição pela Universidade de Brasília, integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares-RENAP, do coletivo Diálogos Lyrianos da UnB e autor do livro 11 Retratos por 20 Contos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário