sábado, 27 de setembro de 2014

Comer, ato revolucionário. Ou carta do céu na Terra*

        
                                 Luiza Valladares**
Escrevo esta carta com fome. Então, dentre os nove meses de andarilhagem em que degustei desde aromáticas especiarias das margens do Ganges até fétidos ovos cozidos no vapor sulfúrico dos vulcões de Java, vou contar o pedaço mais gostoso da viagem.
É o pedaço mais gostoso não só porque os quitutes que lá encontrei me regalaram com alguma reserva de energia abdominal necessária ao bom andamento da jornada.  É o mais gostoso porque alimentou como nenhum outro minha alma e meu coração.
Quanto ao coração, não consigo avançar muito aqui. É estranho como o sentimento transborda ao mesmo tempo que a timidez impede a palavra. Quanto à alma... bom, me sinto um bocado menos tímida pra falar da alma do que do coração, mas é mais difícil colocar as questões da alma no papel. Mas uma coisa é certa: quando a alma está com fome ela grita, e quando está alimentada a calmaria é notável. O tempo vivido em BumiLangit foi pra mim delicioso porque alimentou minha alma na forma do vislumbre de uma revolução. Explico.
Depois de três meses de viagem pela Ásia, em que percorri 7 países com muita sede, era hora de enraizar-me, só um pouquinho, mas o suficiente para sedimentar aquela mistura de curry indiano, dal nepalês e outros condimentos culturais apimentados que encontrei pelo caminho. A condição de estrangeira falava alto. Ser estrangeira é sentir a alteridade em sua forma mais radical. O abismo insondável entre o sujeito e o próximo sempre está lá, mesmo dentro de uma mesma cultura. Mas viajar é “estar fora”, é “desinscrever-se”, temporariamente, do espaço simbólico que habitamos, nos forçando a nos deparar com esse hiato próprio da nossa condição de seres falantes, portanto, faltantes. A solução de compromisso encontrada pela estrangeira ou pelo estrangeiro que não cede à tentação de domesticação ética do próximo, que aparece na forma da xenofobia ou de um estranhamento insustentável, é a saudade gostosa de casa e a busca por aconchego e familiaridade, mesmo nas terras mais longínquas. Assim fui parar em BumiLangit.
A alguns quilômetros de Yogyakarta, a “capital cultural” de Java, ficava o céu na Terra. Na língua indonésia, “Bumi” significa Terra e “Langit”, céu. É apenas uma fazenda de permacultura, mas a intenção colocada no nome pelo seu fundador, Pak IskandarWaworuntu, é mais que a de apetecer àqueles que buscam pelo Paraíso. É um apelo, há muitos séculos ouvido nas periferias das cidades. “Fugere Urbem!!!” já gritavam os antigos, em suas antigas línguas, em suas antigas fazendas tocadas com antigas técnicas de permacultura.
A fazenda não é muito grande. Nela vive e trabalha uma comunidade muçulmana de cerca de 15 pessoas, 3 vacas, 4 cabritos e incontáveis galinhas (incontáveis não porque são muito numerosas, mas porque são realmente difíceis de serem contadas). Quase tudo que é consumido é produzido por lá, desde a energia elétrica gerada por painéis solares até a manteiga de amendoim passada no pão quentinho, iguaria que revigora corpo e mente após o trabalho no campo. E tudo que é preparado, plantado, cuidado e construído procura atender os princípios da permacultura. O termo permacultura foi cunhado em 1988 por Bill Mollison e significa “agricultura permanente”. Mas é só um nome chique para práticas muito antigas, que consistem na criação e manutenção de sistemas e tecnologias que integrem as pessoas e suas necessidades às necessidades e elementos da natureza.
O potencial revolucionário de BumiLangit está na demonstração de que é possível suprir necessidades de forma sustentável e com direito a manteiga de amendoim. Mas veja bem, a questão na natureza ontológica de uma necessidade e de quais necessidades são “realmente necessárias” é matéria para uma faceta espiritual da revolução, que não cabe discutir aqui. Já que relato a minha experiência, no que toca às minhas necessidades, aquela manteiga de amendoim me calou!
A revolução que BumiLangit deixa entrever começa no ato de plantar. Plantar é uma das atividades culturais mais antigas e encerra em si um significado quase místico, que vai além de apenas colocar uma semente no chão. É observar a natureza criar e nos dá a oportunidade de coadjuvar nessa produção e de aprender com ela. Isso é muito importante em tempos que nos induzem a apertar o play e a apenas reproduzir um repertório cultural já batido, pois o ato criativo nos tira do modo de funcionamento baseado no consumo. Acredito que o apelo de plantar é parecido com o apelo da arte.
Contemplar como a natureza cria e agir de forma a facilitar esse processo nos ajuda também a restabelecer uma conexão perdida. As práticas agriculturais atuais procuram “reinventar” a natureza. É como se a agricultura de hoje em dia lutasse contra os processos naturais, lançando mão de pesticidas, fertilizantes, alimentos transgênicos e técnicas cada vez mais distantes do modo de operação da natureza. Além de gerar um passivo ambiental imenso, essa não é a opção mais eficiente e muito menos a mais saudável. A única explicação para a escolha por esse modo de produção é o beneficio daqueles poucos por trás da indústria do agronegócio.
O desconforto gerado pela desconfiança sobre um saber que deveria ser tão intuitivo, como é o ato de plantar, cedeu lugar à esperança por meio da práxis, pois o rompimento com as práticas agriculturais nocivas parte de uma atitude de não subtração à nossa própria natureza. Nesse sentido, a agricultura feita de forma respeitosa e responsável transcende o objetivo da produção de alimentos. Essa é apenas uma reação inevitável, apesar de desejada. Plantar pode ser uma forma de cultivar mulheres e homens com uma visão mais holística de seu lugar no mundo. 
Algo vai muito mal na cidade e BumiLangit foi um celeiro de reflexões sobre a questão agrária, ecológica, religiosa e... gastronômica. Sim, gastronômica porque o bem-querer ao plantar e colher transbordam para o sabor dos alimentos. E esse aspecto tempera bastante o argumento a favor da agricultura natural, ainda mais quando escrevemos com fome. Afinal, plantamos para comer e queremos comer bem e com sabor. Enfim, irei à mesa e ao quintal mantendo em mente que comer bem é suster a vida e traz em si o potencial de um ato revolucionário.
*As “cartas” têm sido publicadas neste Blog como impressões/reflexões de viagens para intercâmbio e estudos de pós-graduação de membros dos vários coletivos que se encontram nos Diálogos Lyrianos. Assim, estão aqui colecionadas as Cartas de Nagoya (Diego Nardi), as Cartas da Áustria, Finlândia, Áustria, Alemanha e agora da China (Layla Jorge Teixeira Cesar) e as Cartas do Gotemburgo  (Ana Luiza Almeida e Silva). A elas vem se colecionar as Cartas da Indochina de Luiza Valladares e, em breve as Cartas do Mondego, de Lívia Gimenes e de Patrick Mariano que estão embarcando para Coimbra para seguir programas de pós-graduação.
** Luiza Valladares faz graduação em Psicologia na UnB e em Direito no UniCEUB. Integra a AJUP Roberto Lyra Filho, assessoria jurídica universitária vinculada à FD/UnB e participa do Coletivo Diálogos Lyrianos.


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