segunda-feira, 2 de junho de 2014

IDÉIAS JURÍDICAS E CONCEPÇÕES DE MUNDO QUE NÃO SE DEIXAM REPRESAR (*)



                                                                                       José Geraldo de Sousa Junior

            Bem ao final de 2007 a Faculdade de Direito da UnB recebeu da ABEDI – Associação Brasileira de Ensino do Direito, o prêmio Roberto Lyra Filho de Ensino Jurídico. A solenidade teve lugar no Ministério da Justiça em Brasília, por ocasião da abertura do Congresso 180 Anos do Ensino do Direito no Brasil e a Democratização do Acesso à Justiça.
            É, no mínimo curioso constatar, com a premiação, o reconhecimento expresso na escolha do nome e no balizamento construído em uma obra, que revelam a atualidade de  pensamento de um jurista brasileiro singular, às vezes rejeitado no próprio ambiente em que sua contribuição mais nitidamente foi formulada.
            Com efeito, embora seja notável a recepção das idéias do Professor Roberto Lyra Filho para o conhecimento do Direito (Para um direito sem dogmas, publicado por Sergio Fabris Editor, 1978) e para o seu ensino (O Direito que se ensina errado, publicado em Brasília pela Editora Obreira/Centro Acadêmico de Direito da UnB, 1980), forte na concepção de que o Direito não é norma, mas antes “a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”, é ali onde mais firmemente essas idéias frutificaram, a ponto de hoje conformarem a mais antiga linha de pesquisa certificada pelo CNPq na área de Direito (Plataforma Lattes) e, portanto, do maior número de dissertações e monografias aprovadas e publicadas, sendo ainda denominação de matérias na graduação e na pós-graduação, que se arma um tipo de objeção à continuidade fecundante dos pressupostos dessas idéias, ou pelo menos, de sua atualidade.
            A crítica epistemológica, esta sim, razoável e salutar, é oportuna. Aqui mesmo, no espaço desta coluna, já travei enfrentamentos neste campo (Na rua a construção da cultura de cidadania, Revista do Sindjus nº 35, nov/2006; O direito como liberdade e consciência, Revista do Sindjus, nº 36, dez/2006). Mas esta outra crítica, difusa e generalizante, de que a morte do autor data suas idéias e que sua interlocução seletiva produz o efeito de represamento das idéias, perde de vista que toda e qualquer obra de inteligência se projeta pela força do filosofar do sujeito pensante, sua aptidão para compartilhar e fazer trocas intelectuais e pelo impulso antecipatório que contém. O que se retém no tempo é o lastro dos filosofemas, contidos nas circunstâncias de tempo e lugar. A dialética vai além de Hegel e de Marx. A noção de anomia, eu próprio escrevi em um trabalho (Para a crítica da eficácia do direito, Fabris, 1981), tem sentidos não previstos por seus próprios formuladores – Durkheim, Merton, Duvignaud - e que se prorrogam para além de seu modo de pensar.
Lyra Filho tem um pensamento dialógico – ao contrário do solipsismo que estas mesmas objeções insistem em lhe atribuir – e por isso encontrou uma interlocução formidável, sobretudo ao se prorrogar na fortuna crítica do projeto coletivo “O Direito Achado na Rua”, num rico intercâmbio local entre alunos e professores formados na vertente de seu humanismo dialético; nacional, no arranque da crítica jurídica ao positivismo e ao conformismo de reprodução às vezes erudita; e internacional, com registros marcantes em Boaventura de Sousa Santos, J. J. Gomes Canotilho, Elias Diáz, Sanchez Rubio, Herrera Flores, André-Jean Arnaud, entre tantos.
Por isso Sara Cortes indica bem, em cuidadoso estudo acerca das perspectivas históricas do pensamento deste autor (A ‘dignidade política do direito’ e a ‘dignidade jurídica da política’. No caminho de Roberto Lyra Filho, Estudos de Direito Público/Direitos Fundamentais e Estado Democrático de Direito, Editora Síntese/Faculdade de Direito da UnB, 2003), que a afirmação de superação ou de represamento de suas idéias pode, em certas circunstâncias, proceder de juristas que procuram afastá-lo muito comumente porque não se deram ao trabalho de o  estudar ou o absorver no processo dialético, em vista da violência que vivemos nos anos 90, especialmente, na construção do conhecimento, com o celebrado fim das utopias, o fim da história e instalação de um pensamento único.
Até aí pode-se admitir legitimamente objeções. O alarmante será se, em face das demandas emancipatórias que este modo de pensar carrega para orientar ações com impulso de transformação do mundo, as objeções ganhem alcance de veto para obstruir projetos sociais, políticos ou acadêmicos.

(*) Publicado em Idéias para a Cidadania e para a Justiça, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2008, págs. 115-116 e, originalmente na Coluna de José Geraldo de Sousa Junior, na Revista SindjusDF,

 

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