segunda-feira, 9 de junho de 2014

O silenciamento das vozes que vêm da rua: sobre as manifestações, a ideologia de segurança e a criminalização dos movimentos sociais.




                                                                                                               Helena Rosal Silva (*)

O Direito Achado na Rua, expressão cunhada por Roberto Lyra Filho, representa uma concepção de direito que emerge dos espaços públicos – da rua-, nos quais os o povo – titular do poder - atua em conjunto, em um protagonismo coletivo. Essa experiência insurge como transformadora e emancipadora para os atores sociais que se constituem nos novos sujeitos de direito. A rua é vista, nessa perspectiva, como espaço de comunicação, lugar de protesto, de um protagonismo transformador. Ela é arena de luta pela liberdade e reivindicação social.
E foi nesse lócus específico que, em Junho de 2013, emergiu um conjunto de manifestações de grupos insatisfeitos com a conjuntura brasileira, marcada pela corrupção dos políticos, a falta de respeito aos direitos das minorias, os excessivos gastos com megaeventos, além da forte repressão policial e criminalização dos movimentos sociais.
Segundo sociólogo Manuel Castells, no livro Redes de indignação e esperança, essas manifestações civis são face de um movimento democrático de reconhecimento dos sujeitos, de constituição de um espaço crítico instituinte e da materialização de direitos através de uma cidadania ativa.
A normatividade estatal, puramente legalista, revela-se incompatível com as formas cada vez mais fluídas da esfera social. O pluralismo jurídico apresenta-se, assim, como um caminho a se seguir, marcado pela relativização do institucional e pelo deslocamento do processo de elaboração normativa para o social. Essa concepção das redes em formas horizontais e descentralizadas representa uma nova forma de se encarar o Direito.
Diante de tudo isso, conclui-se que a criação de direitos depende da vivência concreta da democracia política, da abertura do campo social, de modo que os sujeitos possam se organizar para questionar criticamente a realidade, expondo publicamente os seus problemas e reivindicando as soluções necessárias. É desse modo que os movimentos sociais são acolhidos pelo Direito, de forma a tornar juridicamente válida – e, portanto, legítima – a sua manifestação e o seu inconformismo.
Nessa lógica, a criminalização dos movimentos sociais, apoiada por uma estrutura repressiva, revela-se incompatível com a democracia. Esses movimentos, quando se mobilizam em atos políticos para lutar por direitos, não estão contrários à lei. Ao contrário, têm o direito ao protesto protegido e garantido constitucionalmente pela inter-relação de três outros direitos, tidos como garantias fundamentais, elencados no rol de incisos do artigo 5º da Constituição Federal: a liberdade de expressão, liberdade de reunião e liberdade de associação.
No entanto, apesar de ser garantido constitucionalmente, existe uma lacuna jurídica no que diz respeito à proteção do direito de protesto. A inexistência de legislação específica para o uso das forças policiais no contexto das manifestações sociais no Brasil afeta a liberdade de expressão, uma vez que alarga a margem de discricionariedade para que o Estado se utilize de seu poder de coação de forma desproporcional e arbitrária contra os manifestantes.
Essa ausência de lei que regulamente a utilização das forças policiais nos protestos cria um ambiente de insegurança jurídica, na medida em que permite a aplicação das mais diversas leis para as situações particulares que ocorrem durante os protestos. No Brasil, sobretudo após a intensificação dos protestos a partir de junho de 2013, tal quadro levou ao tratamento das manifestações através da polícia, da repressão e do direito penal.
 Em uma tentativa de regulamentação, vários projetos de lei foram elaborados com o objetivo de repelir e gerar receio naqueles que queiram ocupar os espaços públicos para apresentar as suas demandas.  Um deles, o Projeto de Lei 499/13, define o crime de terrorismo no Brasil, caracterizando-o como “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação de liberdade”. Ressalta-se que a textura aberta e indefinida de tal definição possibilita generalizações, podendo ser instrumentalizada para enquadrar manifestantes como terroristas durante os protestos no Brasil, levando à criminalização dos movimentos sociais.
A atuação das Polícias na repressão às manifestações pautou-se pela violência, pelo cometimento de abusos e arbitrariedades, indo contra a ordem Constitucional e o Estado Democrático de Direito. É necessário garantir que elas atuem não meramente como aparato repressivo, mas sim na proteção e garantia das liberdades democráticas. A ação policial durante os protestos deve ter como paradigma os princípios da não violência, da garantia dos direitos humanos e do diálogo.
A criminalização dos movimentos sociais e a repressão violenta demonstram uma resistência ao cumprimento da ordem jurídica constitucional, a qual tem como base os direitos humanos e preceitos do direito social. Essas tentativas de restringir e penalizar a atuação política dos manifestantes se apresentam como um obstáculo à consolidação das instituições democráticas e uma ameaça aos direitos e garantias conquistados no período pós-ditadura, dentre os quais se encontram a liberdade de expressão e manifestação. A possibilidade de contestação da ordem vigente é premissa fundamental de uma sociedade democrática e instrumento central para a concretização de outros direitos. 
Por conseguinte, para que as mudanças requeridas nas ruas sejam efetivadas, faz-se necessária a superação da noção retrógrada de que a questão social constitui um “caso de polícia”. Movimentos de resistência e de criação e ampliação de direitos se proliferam por meio de estatutos inovadores de organização. Desse modo, na conjuntura atual, o Estado e o Direito são chamados a reconhecer e assegurar as condições de mediação institucional para o acolhimento desse protagonismo social coletivo que se move para realizar direitos, sendo colocados diante da necessidade de se reformularem, buscando uma participação mais (cri)ativa e em um contexto novo.

Referências Bibliográficas:
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Tradução por Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. Brasília: Braziliense, 1992.
Protestos no Brasil 2013. Artigo 19 Brasil. Disponível em: <http://artigo19.org/protestos/Protestos_no_Brasil_2013.pdf>. Acesso em: 2 de junho 2014.

(*) Aluna do 2º semestre. Texto preparado para a disciplina Sociologia Jurídica, Curso de  Direito, da Faculdade de Direito da UnB, 1º semestre de 2014.

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