domingo, 27 de abril de 2014

UM MEMORIAL PROJETADO PARA O FUTURO*




                                                  José Geraldo de Sousa Junior
                                                        Reitor da UnB

Em seu último discurso na UnB, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa e a homenagem de ter seu nome atribuído ao campus, Darcy Ribeiro nos convocou para olhar o futuro. Entre nostálgico de si mesmo e dos velhos tempos de fundação da Universidade de Brasília, o ainda bravo guerreiro de “muitas batalhas”, mais uma vez exortou a todos: “o que peço é que voltem ao Campus Universitário Darcy Ribeiro aquela convivência alegre, aquele espírito fraternal, aquela devoção profunda ao domínio do saber e a sua aplicação frutífera”.
            Nos últimos meses, de minha janela no terceiro andar da Reitoria, incorporei o hábito de acompanhar o cotidiano da edificação do Memorial Darcy Ribeiro, a bela peça arquitetônica projetada por João Filgueiras Lima, o Lelé, para realizar o último legado de Darcy para a sua amada UnB. De meu ponto de visão, descortinando um recanto da Praça Maior em ângulo com a extremidade sul do ICC, o edifício símbolo da própria Universidade, pude seguir a cada dia, como quem vira as páginas de um álbum, as mudanças perceptíveis do projeto em execução.
            Primeiro a demarcação da área, com o trabalho de terraplenagem e de sondagens realizado pelas equipes técnicas da UnB. Logo, os tapumes configurando o canteiro, e nas suas lâminas, jóias do pensamento do fundador: “A vocação da UnB é ser uma universidade completa”; “A UnB deve reger-se a si própria, livre e responsavelmente”. As frases, como que a assinalar um destino, reavivaram a utopia da universidade necessária, conquanto aspire ainda a se constituir como uma universidade emancipatória. Aqui, onde o conhecimento haure de seu acumulado universal, o seu máximo alcance civilizatório, a universidade moderna da cidade modernista, quer afirmar o seu compromisso social como condição para incluir os novos sujeitos que emergem das lutas democráticas para aspirar justiça e liberdade.         
E a obra em processo foi, aos poucos, materializando o esboço projetado da própria mente de seu criador, ao conceber a universidade que agora a acolhe: “A verdadeira Universidade de Brasília é a utopia concreta que subsiste calada entre seus muros no espírito dos estudantes e dos professores que guardam fidelidade ao seu espírito; mas é, também, a universidade exclausurada, que vive onde sobrevivem os que a conceberam; e é, sobretudo, a que ressurgirá em quantos, amanhã, hão de reencarná-la em liberdade e dignidade” (Carta 14, 1995).
            A cada dia, equipes bem organizadas, apetrechadas, com plano bem definido e segura direção do Instituto Brasileiro de Tecnologia do Habitat (IBTH), presidido pelo próprio Lelé e tendo no canteiro a presença coordenadora da arquiteta Adriana Filgueiras, começaram a dar forma à edificação, muito assemelhada ao desenho descrito na carta de Lelé para Darcy: “Lembra um pouco um disco voador ou uma mistura de maloca dos Xavantes com a dos Kamayanás, que você tanto admira”. Tal qual formigas, ou abelhas, em seus uniformes azuis, usando capacetes, botas, cintos, luvas, óculos, os trabalhadores se distribuíam pela estrutura, sobre a cúpula, de dia e de noite, azafamadamente, fazendo surgir a construção, conforme desenhada no projeto e em respeito, como se disse na audiência pública em que ele foi apresentado à sociedade e à comunidade universitária, com a preocupação de “não só manter a harmonia urbanística no local como preservar o ambiente paisagístico”. Como lembrou na ocasião o arquiteto Alberto Faria, da UnB, “um único ipê será transplantado”.
            Quase sem querer, a cada cena do processo, evoquei as imagens celebradas de Charles C. Ebbets e seu sensível registro do cotidiano de trabalhadores que participaram na construção de arranha-céus nova-iorquinos entre 1920 e 1935. Se bem suas insuperáveis fotos servissem para denunciar a inexistência de medidas de segurança, bastando recordar a sequência de 1932, no 69º andar do edifício GE do Rockefeller Center, não deixam de transmitir uma rara delicadeza plástica de momentos de harmonia entre o impulso genial que concebe um projeto e a mediação humana que lhe dá forma no instante da execução.
            Eles são como os operários de Brecht, construtores de Tebas, das Muralhas da China, dos Palácios da Babilônia, dos arcos de triunfo de Roma. São eles que não apenas assentam tijolos ou esquadrias de metal, mas que constroem catedrais e, neste momento, revendo fotos do jovem fotógrafo da Secretaria de Comunicação da UnB Luiz Filipe Barcelos, em seu belo ensaio para a Revista Darcy, eu diria que eles estão construindo uma universidade, sintetizada no Memorial Darcy Ribeiro.
            Essa disposição aparece na carta de 1996 do amigo Lelé, apresentando a Darcy o projeto: “Foi assim que concebi uma ‘casa digna’ para guardar seus livros, seu ‘beijódromo’e tudo o mais que você imaginar”. E foi assim também, em carta dirigida ao reitor da UnB, em março de 1996, que Darcy Ribeiro lavrou os termos de seu legado a UnB:
 “Os estatutos da FUNDAR de que estou mandando cópia, determinam que seu Presidente elegerá a Universidade que virá a acolher, a qual receberá e porá em uso público a biblioteca de trinta mil volumes e o arquivo documental, bem como os objetos de arte de Darcy Ribeiro e de Berta Gleizer Ribeiro, nela funcionará a direção superior da Fundação, que regerá a republicação das obras de ambos, cujos direitos foram transferidos a FUNDAR.
O instituidor da FUNDAR espera da Universidade que destine, mediante cessão de uso, uma área para construção da Biblioteca Darcy Ribeiro e seus órgãos colaterais. Espera ainda que a Universidade ajude na edificação da referida Biblioteca e que destaque de seus quadros alguns servidores para manutenção e uso da biblioteca.
Meu desejo Senhor Reitor é que seja a Universidade de Brasília, a que estou fortemente vinculado, que acolha a FUNDAR.

Mas este caminho não foi facilmente percorrido. Nem em linha muito contínua. Até que se retomasse recentemente aqueles compromissos de 1996, e agora em 2010, se pudesse celebrar o termo de permissão de uso para destinar a área de instalação do Memorial e liberar os procedimentos necessários à implementação do projeto sonhado, um pouco de amargo desapontamento deixou em sobressalto o próprio sonho.
Vera Brant, conselheira da FUNDAR e amiga dileta de Darcy, faz, em seu livro Darcy (Editora Paz e Terra, São Paulo, 2002, páginas 111 a 113), o registro ressentido do que ela chamou de grande insensibilidade.
O Cristovam Buarque, governador de Brasília e do PT, tentou ajudar. Foi ao                                      reitor, falou da tristeza do Darcy, que não era justo ele ter essa decepção. Nadinha. Nunca vi tanta insensibilidade na minha vida.
Eu dizia ao Darcy:
- Desista dessa idéia da campus, meu filho. A gente consegue um terreno a caminho da Universidade. Quem for para lá terá que passar por você.
Não havia argumento que o vencesse: a UnB era a sua filha e teria que ser lá.
No domingo, achei-o tão triste e desanimado que liguei para a casa do reitor e disse-lhe:
- Você está perdendo uma bela chance de ser lembrado no futuro. Nós colocaríamos uma placa informando que você ajudou na realização do Memorial Darcy Ribeiro.
Três dias antes do Darcy morrer, num sábado, à tarde, o Cristovam ligou para o Hospital Sarah e disse-lhe que teríamos uma reunião na terça-feira para resolver, de uma vez por todas o problema. Eu sabia que não era verdade. Mas deixei o Darcy ficar feliz, assim mesmo.
Logo em seguida, o Oscar ligou. O Darcy disse:
- Meu irmão, eu estou morrendo.
- Não está não, Darcy. Você ainda vai viver dez anos e vamos morrer, juntos.
- Eu não me importo de morrer, não. O que eu não quero é deixar este planeta. Sabe, Oscar, a construção do prédio da Fundação na UnB vai dar certo. O Cristovam acabou de me dizer.
Fiquei emocionada. E não tive coragem de dizer a ele que eu tinha certeza de que não aconteceria nada, como não aconteceu. O Cristovam também já não tinha esperanças. Ele deve ter falado isso para consolar o Darcy.
Foi preciso o Presidente operário para se fazer acessível ao compromisso de reconhecimento. O mesmo Presidente, aliás, o único Presidente que durante todos os anos de seu mandato, reuniu para diálogo todos os Reitores federais brasileiros e com eles concertou o maior programa de investimentos já realizado para o desenvolvimento das universidades públicas, para que elas se expandam, ampliem vagas, democratizem o acesso e se re-estruturem em direção à atualização de seus fins institucionais, de oferecer educação superior de qualidade como um bem público e social.
Este Presidente operário, atento ao papel transformador da educação, é ainda o Mecenas sensível, convencido de que se “a história de um país é expressa pela trajetória do povo que o construiu, por sua luta pela sobrevivência e autonomia”, este percurso “e o conjunto de suas conquistas faz-se representar também pelas idéias e mãos de seus artistas”.
A passagem transcrita consta da mensagem que abre o catálogo e a exposição Entre Séculos/Acervos Públicos do Distrito Federal, mostra realizada no Museu da República, em Brasília, em novembro de 2009, por ele inspirada e realizada para “contribuir para o acesso público a este patrimônio cultural e influir diretamente para a informação e formação daqueles que não têm como conhecê-la em seu dia a dia”. A exposição reuniu, com essa orientação, os acervos públicos do Museu Nacional Cultural da República, do Museu de Arte de Brasília, do Memorial dos Povos Indígenas, da Caixa Econômica Federal, do Banco Central e da Universidade de Brasília.
            E é ainda este mesmo Presidente, cuidadoso do dever de consideração, que se move em tributo de reconhecimento para homenagear o grande brasileiro Darcy Ribeiro, antropólogo, educador, escritor, político, semeador de esperanças. Ele orienta o seu Ministro da Cultura no sentido de criar as condições de materialização de seu derradeiro sonho que é instalar na UnB, o seu Memorial.
            Mas, como resumi antes, um Memorial que seja fiel à vivacidade instigante do homenageado, que seja projetado para olhar o futuro. E que se incruste, definitivamente, no território de sua filha querida, ali naquela “faixa de terras na qual conquistara um bom pedaço do planeta Terra para nele edificar a Casa do Espírito, enquanto saber, cultura, ciências: a Universidade de Brasília, nossa UnB”.
            Nesta Universidade de Brasília, repete o seu fundador, que “Existe, para entender o Brasil com toda a profundidade, - e cuja primeira tarefa para - o exercício dessa missão é ter a coragem de lavar os olhos para ver nossa realidade, é perscrutá-la, é examiná-la, é analisá-la – porque, ao fim e ao cabo – o Brasil, entendido como seu povo e seu destino, é nosso tema e nosso problema (Universidade Para Quê? Série UnB, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1986, p. 14).
            Sim, nesta Universidade de Brasília, registra o Ministro Juca Ferreira em seu discurso lido na abertura do Seminário Encontro de Saberes realizado em setembro de 2010, que não deixe perder-se “a sua função de razão crítica, de entidade processadora de sínteses e renovadora de conceitos, a Universidade (que) hoje abre as portas para formas de sentir, de criar, de pensar e de fazer que a sociedade produziu para si mesma”.
            Um lugar, enfim, adequado para abrigar o legado de Darcy, realizando, talvez, um de seus últimos desejos, e, como próprio de Darcy, embrulhado de inexcedível afeto. Num artigo de Oscar Niemeyer (“A Importância da Fundação Darcy Ribeiro”), o velho amigo rememora trechos de uma conversa (“Três ou quatro dias antes do seu aniversário, fui ver o meu amigo Darcy Ribeiro no apartamento em que mora em Copacabana. E lá estava esse meu irmão a escrever como sempre, sentado na sua poltrona preferida... E a conversa continuou, mas foi ao falarmos da Fundação Darcy Ribeiro, que ela se esticou, como se impunha”).
            Essa memória-testemunho, reafirma a intenção e as razões do legado. Lembra Oscar: “A Fundação Darcy Ribeiro vai ser construída na Universidade de Brasília, que Darcy criou”. E esta obra, para o grande arquiteto, tem a maior importância, é indispensável e precisa ser construída, porque “representa a vida de um brasileiro que honra, com seu talento, coragem e idealismo, o nosso país”.

(Publicado no Livro Memorial Darcy Ribeiro BEIJÓDROMO, Editora UnB/Fundação Darcy Ribeiro, Brasília, 2012)        
           

           
           

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