segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

ELA, uma resenha instigante

José Carlos Moreira da Silva Filho, Professor da PUC-RS; vice-presidente da Comissão de Anistia; prepara o volume 7, de O Direito Achado na Rua (Justiça de Transição)
 
Tenho visto algumas sinopses sobre o filme ELA, que estreou na sexta aqui em POA. Creio que elas induzem o leitor a fazer uma ideia equivocada do que verão. Indicam que o filme trata de um homem solitário que se apaixona por um computador e que o cerne do filme é a questão da cada vez maior interação tecnológica.

Fui ao cinema esperando um filme sombrio permeado por uma esfera emocional deprimente e pervertida. Por um lado, foi bom ter ido com esta expectativa, pois a minha surpresa foi total. Trata-se de um filme belíssimo, lírico, que extrai leveza das profundezas.

Theodore, o personagem interpretado por Joaquim Phoenix, não se encaixa no estereótipo do homem solitário que recorre ao bate-papo virtual ou às relações sexuais telemáticas e telefônicas. Ele não é uma pessoa reclusa que não tem amigos, ou que começa a suar frio só de pensar na possibilidade de encontrar com alguma possível namorada de carne e osso. Theodore é uma pessoa inteligente, espirituosa, que conversa simpaticamente com as pessoas, que faz aquelas piadinhas de "small talk" naturalmente.

Ele simplesmente vive a ressaca de uma separação. Foi casado por muito tempo com Catherine, namorada do tempo de Faculdade, com quem teve uma filhinha. Nos flashs que vão sendo distribuídos ao longo da película, surgem momentos de grande erotismo, descontração, cumplicidade, intimidade. A separação não se deu por uma traição ou algo assim. Simplesmente, aconteceu. Natural que Theodore hesite em se envolver logo depois em um relacionamento (o enredo do filme se desenrola no período que compreende 1 ano após a separação), o que não o impede de ter pequenos flertes e até algumas transas, inclusive por telefone com uma mulher desconhecida (em uma cena até engraçada logo no início).

O grande diferencial do enredo é a sensibilidade e lirismo do personagem. Não é à toa que a profissão de Theodore consiste em escrever cartas de amor para outras pessoas assinarem e enviarem aos alvos dos seus afetos. Em suas cartas, por mais que elas não estejam representando diretamente relacionamentos vividos por quem de fato as escreve, Theodore consegue transmitir sentimentos simples, genuínos e tocantes, que encantam os seus colegas de trabalho, e editores interessados em publicá-las com o título de "Letters from your life".

Em uma Los Angeles do futuro, representada na fotografia do filme com paisagens urbanas matizadas por cores e luminosidades que parecem ter saído de um filtro do Instagram, a interação entre pessoas e dispositivos eletrônicos e telemáticos é cada vez maior. Os computadores atendem por comando de voz, podendo ser acionados por pequenos dispositivos móveis com microfones e atrelados a um fone de ouvido, podendo organizar pastas, redigir e enviar e-mails, fazer correções em textos, entre outras tarefas. Chega-se a um ponto em que é lançado no mercado um sistema operacional, OS1, que como diz a propaganda: "É mais do que uma inteligência artificial, é uma consciência". Outro atributo divulgado é que se trata de um sistema marcadamente intuitivo que interage e se adapta de maneira humana com o seu usuário. Theodore decide experimentar e opta por um sistema com voz feminina, a voz de Scarlett Johansson. A atuação da Scarlett, mesmo sem ter um corpo no filme, é incrível. Já nas primeiras conversas com Theodore, eu também fiquei cativado pelo tom ao mesmo tempo sexy, engraçado, inteligente e confortável da voz da Samantha, nome que o próprio sistema se deu logo que Theodore lhe perguntou como se chamava (após uma vertiginosa pesquisa de dois centésimos de segundo em um livro que listava milhares de nomes para bebês).

Os diálogos que vão sendo construídos na interação entre Theodore e Samantha são preciosos. Eles vão tecendo a atmosfera ideal para que brotem a poesia e o pensamento (as cartas de Theodore, as reflexões sobre a existência e a sua natureza encarnada), o humor com intimidade (interpretações sobre casais desconhecidos pinçados em lugares públicos), a música (as belas composições que vão sendo feitas ao piano por Samantha, na medida em que ela vai se envolvendo com Theodore, na tentativa de registrar momentos indescritíveis, como a tarde de sol na qual Theodore a leva á praia munido do fone de ouvido e de um dispositivo ótico de bolso), o erotismo (as transas virtuais, as palavras sedutoras, os suspiros, os sons da respiração ofegante, os orgasmos, quantas são as relações sexuais que mesmo com o contato corporal são tão distantes e frias...).

O nível de intimidade atingido na relação entre Theodore e Samantha contrasta com a frieza das transas por telefone com pessoas de carne e osso, ou com a impessoalidade dos "blind dates", como exemplifica um jantar que Theodore tem com uma pretendente sugerida por seus amigos e convidada por email. A existência de uma máquina como Samantha é uma ficção sobre uma máquina que se torna humana. Penso que o foco verdadeiro do filme é o humano que sentimos, difuso entre atores improváveis do mundo, sejam pessoas desconhecidas, uma bela paisagem, um livro que nos emociona, uma música que nos toca. O importante é entrar em contato com este manancial inesgotável que temos em sentir a beleza e a plenitude, a serenidade de um conforto conosco mesmo, a disposição em conviver com os outros a partir dela, de cultivar as amizades (fica claro que a relação dele com sua vizinha, vivida por Amy Adams, é de uma intimidade amiga, não erótica, como insinuam algumas críticas e comentários sobre o filme), os amores, as compaixões.

Não vejo nenhum problema em que a tecnologia possa ser ela também, como de fato é, mais um meio para que isto se expresse. As pessoas nas ruas não deixam de se comunicar por causa dos seus smartphones, elas já não se comunicavam antes deles. A solidão da vida contemporânea vem de algo muito mais profundo e está associada com o conceito moderno de progresso e a sua lógica justificadora dos custos humanos, que deixa em segundo plano, as dores, os sonhos, os projetos, os afetos. Lógica que permeia as tendências políticas majoritárias, sejam de direita ou de esquerda, como Walter Benjamin, de modo tão sensível e também lírico captou em seus escritos.

Os sentimentos compartilhados nas cartas de Theodore ou nas conversas de Samantha são reais, pairam no ar que respiramos, tecem o mundo que vivemos e que nos constitui. Chico captou bem em uma linda canção que compôs: "Futuros amantes quiçá se amarão sem saber, com o amor que um dia guardei pra você". A subjetividade vai além de uma consciência fixa e ensimesmada, ela é um movimento, que perpassa nossa memória, nossas experiências, nossa sociedade, nosso planeta.

Não escrevo mais para não turvar as impressões de quem queira assistir o filme, mas termino recomendando fortemente que o façam e registrando que eu também me apaixonaria pela voz da Scarlett Johansson!

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