sábado, 21 de dezembro de 2013

2a. Carta de Viena sobre Ensino Superior. A Universidade e sua Função de Inovação Social



Layla Jorge Teixeira Cesar *

Há uma semana tive a oportunidade de conhecer como operava o – agora recém-extinto – Ministério de Ciência e Pesquisa da Áustria, em seu escritório em Viena. Foi a última chance para visitar a sede da coordenação da agenda de Ensino Superior do país, realocada depois das últimas eleições para presidência[1] que reelegeram o partido Social Democrata Austríaco e suas alianças.

A partir de 16 de dezembro, a ciência e a educação terciária se tornariam pastas do Ministério da Economia e Família.

Esta não é uma alteração sem importância no cenário austríaco: o país é uma das poucas referências europeias a um sistema de ensino superior universal e gratuito[2]. Todavia, foi exatamente baseado no padrão europeu que o novo ministro Reinhold Mitterlehner, membro do conservador Partido Popular da Áustria (ÖVP), justificou a nova política. Unindo os dois ministérios, ele afirmou, seria possível cobrir completamente a cadeia de inovação e produção tecnológica e atender, com maior eficiência, aos princípios do Horizon 2020, maior programa da União Europeia para financiamento de pesquisa. Seria a condição para que a Áustria saísse da posição de consumidora para se tornar líder em inovação tecnológica.

Outros setores da sociedade e da comunidade acadêmica não compartilham dessa opinião, e a transição estratégica não se deu sem resistência. A fusão é tida como subordinação do ensino superior a uma pauta de desenvolvimentismo econômico. Por essa razão, estudantes, docentes e gestores/as em todo o país se posicionaram firmemente contra a ação.

Apenas havia sido feito o anúncio oficial da mudança e a União Nacional de Estudantes[3] – forte e muito bem organizada – ocupava as ruas de Viena com um cortejo fúnebre que se iniciou nas portas do antigo ministério. 9.500 estudantes tomaram parte no protesto, e as instituições de ensino superior da capital suspenderam suas aulas para estimular maior participação.

Florian Kraushofer, presidente da União, disse em entrevista que as demonstrações visavam chamar atenção para o fato de que o ensino superior e a pesquisa básica haviam deixado de ser prioridade para o novo governo, sendo subordinadas à lógica de mercado. “A ciência segue uma lógica distinta. Seja pura ou aplicada, é preciso que seja livre da preocupação com metas. A ciência não pode ser sempre lucrativa”. Outra preocupação central dos estudantes é que se estabeleça algum regime de recrutamento (ou seja, que o acesso deixe de ser universal) ou, ainda, que passem a ser cobradas taxas e anuidade, eliminando o caráter da educação gratuita como direito.

O presidente da Associação das Universidades Públicas da Áustria[4], Heinrich Schmidinger, tentou fazer um último apelo para que a presidência não empossasse seu governo sem um ministério exclusivo para ciência e gestão do ensino superior. Frustrada, a orientação da Associação foi para que todas as universidades afiliadas cobrissem suas fachadas com bandeiras pretas em repúdio.

Mitterlehner reagiu dizendo que as universidades estavam exagerando. Afinal de contas, apenas uma nova estrutura estava sendo proposta.

As prioridades da atual gestão, entretanto, são descontínuas em relação à administração anterior e se expressam de maneira clara: atingir "déficit estrutural zero" até 2016 para "atrair investidores de todo o mundo", ainda que isso custe "medidas mais duras".

Esse avanço do capitalismo global sobre o ensino superior não pode ser ignorado. Quanto mais se aproximam da lógica de mercado, mais as universidades deixam de servir à sua função educativa e passam a servir à domesticação do trabalho. A liberdade do laissez-faire que a associação direta às demandas do mercado oferece não pode ser confundida com autonomia universitária, pelo contrário. Condicionar a produção do ensino superior ao ritmo do consumo de tecnologia aliena as instituições da possibilidade de produzir alternativas ao próprio modelo econômico que as aprisiona.

Também é fator digno de análise a força da integração da União Europeia como bloco de ensino superior que avança no sentido da lucratividade e eficiência das universidades. Novas redes começam a se formar entre blocos regionais, e a ligação entre a União Europeia e a América Latina já é prevista através do projeto AL Tuning ( http://tuning.unideusto.org/tuningal/ ). Esse tipo de associação pode trazer resultados muito positivos, mas nossa posição marginalizada dentro da divisão internacional do trabalho intelectual nos permite antecipar também a potencial desigualdade a ser gerada a partir daí caso não exista proteção à autonomia e emancipação das nossas instituições de ensino superior.

A recente experiência austríaca deve servir de alerta para reforçar o papel histórico das universidades como elementos de manutenção da cultura, no sentido amplo do termo. Estas não podem estar restritas à inovação tecnológica se queremos que exerçam sua função de inovação social.

O chamado dos estudantes vienenses nos é, portanto, comum, e nossas ruas se únem através da sua indignação. Ocupemos!

* Layla Jorge Teixeira Cesar é mestre em Sociologia pela UnB e participa atualmente do programa MARIHE - Mestrado em Pesquisa, Inovação e Gestão de Ensino Superior, uma ação do consórcio entre universidades na Àustria, Finlândia, China e Alemanha. Faz parte da rede Diálogos Lyrianos – O Direito Achado na Rua




[1]     As eleições para presidência na Áustria foram realizadas a 29 de setembro deste ano.
[2]     O sistema de ensino superior austríaco é gratuito para todos os cidadãos de países membro da União Europeia. Uma taxa de anuidade – relativamente baixa para os padrões europeus – é também cobrada caso os/as estudantes ultrapassem o tempo de formação regular de seus cursos.
[3]     Österreichische Hochschülerschaft
[4]     Österreichische Universitätenkonferenz

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