domingo, 20 de outubro de 2013

Impressões do Japão 3ª. Carta de Nagoya



                                                  Diego Nardi

Vivemos em um mundo separado por muros. Dimensão concreta da exclusão, o muro é a condição da emergência e do avanço de discursos de ódio que, para além dos partidos de extrema direita, parecem povoar o imaginário daqueles/as que almejam segurança.

Separam-se casas e ruas. Separam-se bairros e escolas. Separam-se centro e periferia. Separa-se a cidade e separam-se as cidades. Separam-se estados, países, regiões e continentes. Muros, milhares deles, todos os dias erguidos na concretude do espaço habitado ou nos discursos de deslegitimação de subjetividades outras fundadas em uma não identidade com nossa tradição e que resiste (ou tenta resistir) a ela. Muros erguidos pelo silêncio. E por trás dos muros que ajudam a construir, pessoas buscando o conforto e a segurança que o convívio com o estranho, o estrangeiro, lhe priva pela insistente recusa em/incapacidade de confiar na precedência da solidariedade humana, como diz Bauman. Desamparados/as, construímos distâncias intransponíveis entre.

E o desejo inscrito nos muros é o de afastar o mal-estar causado pela presença do estrangeiro.

Ser estrangeiro é ser um não pertencente. O estrangeiro traz em si a marca do estranhamento que faz dele sujeito e ao qual é sujeitado. Em seu movimento, o estrangeiro se fixa, ainda que precariamente, em espaços aos quais não pertence diretamente, e que lhe privam da rede de referências que constituem seu orientar no mundo. Longe do conforto e proteção da morada, o estrangeiro passa a caminhar nesses espaços desconhecidos e, aos poucos, preenche as distâncias com significados. 

A cidade para o estrangeiro não se apresenta como uma totalidade ou com a referencialidade com a qual se apresenta a um local. Cada nova rua integra-se ao que antes era vivido com um todo. O estrangeiro vaga pela cidade, estranhando-a. Mas a cidade não é um puro espaço vazio: ela é o lugar habitado por aqueles/as com os/as quais ela não compartilha a mesma rede de referenciais.  Diferentes identidades, diferentes usos do espaço urbano.

Percorrer a cidade é sujeitar-se a encontros, encruzilhadas, cruzamentos. Um profundo mal estar. O não pertencente, o estrangeiro, é o inesperado, a irrupção do estranho, daquele diante do qual não se sabe o que falar, como se portar, afinal, deve-se ou não se deve tocar, olhar, sorrir, cumprimentar? Ao passo que o estrangeiro mesmo, deslocado pelo não pertencimento e privado da rede de referenciais comum aos nativos, vê-se desorientado e, também, estranho.

Ser estrangeiro é, atualmente, ser desconfiado. É nele que exorcizamos esse mal-estar com o qual não sabemos lidar, consequência do fato de ser o estrangeiro dono de uma opacidade perturbadora, cuja “presença em nosso campo de ação sempre causa desconforto e transforma em árdua empresa a previsão dos efeitos de uma ação, suas possibilidades de sucesso e insucesso”.

Esse mesmo estrangeiro que foi figura central das primeiras experiências urbanas da baixa idade média, e cuja própria condição, muitas vezes, conferia-lhe o respeito necessário para que os destinos de uma cidade lhe fossem confiados, vê-se agora acuado em guetos e cada vez mais impossibilitado de convivência comum nos espaços onde se fixa: sobrepõem-se cidades, trajetórias que muitas vezes se cruzam, mas nunca se encontram.

Viver dentro de muros, pertencendo a um “ambiente uniforme – em companhia de outros ‘como nós’, com os quais é possível ‘se socializar’ superficialmente, sem correr o risco de ser mal-entedido e sem precisar enfrentar a amolação de ter de traduzir um mundo de significados em outro” (BAUMAN, Confiança e Medo na Cidade) nos priva das capacidades “necessárias para lidar com a diferença” (idem).

Recusamos o mal-entendido e o mal-estar que com ele vem. Não sabemos lidar com distâncias culturais, não sabemos traduzir mundos sem calá-los, não permitimos aos outros mundos a palavra. Identificamos nós mesmos o estrangeiro e, nessa divisão, erguemos nossos muros. 

A derrubada dos muros passa, talvez, pela aceitação do mal-entendido como uma dimensão indispensável das relações sociais. Ao invés da recusa, voltemo-nos a incorporação do mal-entendido como uma possibilidade verdadeira de diálogo, pois é a partir dele que contextos referenciais distintos entram em contato e se diferenciam por que falam ao invés de serem falados, abrindo a possibilidade de uma tradução que seja capaz de devolver a fala cujas representações tentam roubar.

Para Boaventura, a tradução “consiste no trabalho de interpretações entre duas ou mais culturas (...) com vista a identificar preocupações ou aspirações semelhantes entre elas e as diferentes respostas que lhes dão”. A tradução é, sobretudo, uma capacidade, entendida não como uma habilidade inata, mas, antes, como uma conquista realizada pela disposição em viver junto, em não recusar a diferença pelo mal-estar que ela gera diante da opacidade que se traduz na possibilidade do mal-entendido. Inexistindo a disposição política pelo viver junto sem supressão das diferenças, a tradução é uma impossibilidade. Dito isso, fundamental é nunca perder de vista a dimensão política da tradução. Afinal, o mal-entendido nada mais é que o resultado do choque entre distintas perspectivas, distintos lugares de fala, distintas referências sociais, e, sobretudo – em um mundo pós-colonial – o choque entre perspectivas marcadas por relações desiguais de poder. Dentro de uma perspectiva pós-colonial, ao se buscar desconstruir os lugares privilegiados, as distintas perspectivas devem permanecer, desestabilizando narrativas totalizantes e evidenciando as contradições que marcam as identidades opressoras. É justamente a permanência e a relação entre diferentes perspectivas  - situação que emerge a partir do mal entendido – que a tradução busca negociar.

A tarefa política da tradução é não apenas permitir que as vozes subalternas resistam à tradução perversa da qual são alvo, mas, sobretudo, através da resistência a essas traduções, possibilitar que a auto-tradução seja possível. Além disso, é fundamental permitir que o acerto acerca das intepretações e dos significados que surgem a partir do esforço compartilhado de tradução sejam negociados a partir de lugares não privilegiados. Aqui não se trata do tradutor. Ele deve sair de cena para que haja a possibilidade da construção política conjunta a partir do mal-entendido. Só há tradução sem tradutor.

A tradução é nada mais que esse esforço em possibilitar que o político surja não como exercício do poder, mas como uma possibilidade real de desconstruir os limites que separam o externo e o interno de uma narrativa que pretende centralizar em si seu fundamento ao impor limites que, todavia, no momento mesmo em que são fixados, já se desestabilizam e fazem de sua pretensão um projeto falho. À tradução, cabe romper com os limites das cadeias e contextos pré-determinados, permitindo cadeias de significações infinitas que se formem a partir dos usos das palavras dentro de contextos compartilhados. Com isso, supera-se princípios de classificação asfixiantes, onde o mal-entendido que emerge da opacidade (o qual se manifesta, sobretudo, na linguagem) possa dar espaço a novas formas de contar histórias (subtraídas).

Talvez, o que a tentativa de tradução nos revela é que aceitar o mal entendido para superá-lo requeira, de fato, a construção conjunta de um sistema de referência totalmente novo, pois, somente assim, poderemos nos defrontar coletivamente com “a difícil aprendizagem de nomear o mundo” da qual já falava Paulo Freire.

No entanto, suspeito que o mal entendido é insuperável: é ele o próprio movimento de superação que nos permitirá construir consensos sem os quais viver junto é uma real impossibilidade, sem os quais não nos será permitido ser estrangeiro diante um dos outros e, apesar disso, pertencermos a uma comunidade. Em outras palavras, manter o mal-entendido como possibilidade de negociação de sentidos, mas uma possibilidade despojada de um mal-estar que nos prende dentro de tantos muros.

A tradução, quando empoderadora, é, simplesmente, uma tarefa revolucionária.

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